A surra que Zenilda da Silva levou do pai por comer mais do que devia é uma memória da infância em Pernambuco. Assim como a mistura de farinha, carne seca e banana verde ou a piaba com água e sal, preparados pela mãe, que ia dormir com fome para as crianças se alimentarem.
A recordação dói tanto quanto aceitar que se tornou obesa, aos 44 anos. Ela vive desde os 9 na periferia de São Paulo, onde criou dois filhos sozinha, como doméstica e cozinheira.
“Eu tenho 133 quilos. É um corpo que não queria ter. As pessoas me rejeitam porque sou gorda, pobre e negra. Então vivo dentro da minha prisão.”
Zenilda perdeu a conta das vezes em que saiu para trabalhar de barriga vazia, levando apenas o dinheiro da condução e da próxima refeição dos pequenos.
Até hoje, sua única refeição garantida é o almoço na cozinha solidária que fundou no Jardim São Luís, na zona sul da capital. Em casa, verduras e frutas são itens de luxo, enquanto embutidos, pães, macarrão instantâneo e refrigerante barato ocupam geladeira e armários.
“Eu não aceitava que meus filhos passassem pela mesma situação que eu. É difícil para uma mãe acordar e não ter um pão para dar ao filho. Eles não queriam saber de onde vinha a comida, só queriam comer, eram crianças. A obrigação era minha”, diz.
A história da pernambucana de Cabo de Santo Agostinho é o retrato de um país tomado por uma epidemia de obesidade, mas que nunca deixou de conviver com a insegurança alimentar e ainda integra o Mapa da Fome da ONU (Organização das Nações Unidas).
Seis em cada dez brasileiros estão com sobrepeso e, entre eles, pelo menos dois (24,3%) têm obesidade. Um salto em relação a 2006, quando havia quatro pessoas com sobrepeso a cada dez, sendo pelo menos um (11,8%) obeso.
Em dezessete anos, o número de obesos dobrou no país, e o sobrepeso cresceu 44%. Os dados são do Vigitel, do Ministério da Saúde, que realiza sondagens por telefone desde 2006.
Nesse contexto, mães negras e pobres como Zenilda da Silva são responsabilizadas, pois recaem sobre elas as escolhas alimentares da família —desde a compra da comida até a decisão de comer menos (e mal) para que seus filhos possam se alimentar.
“Se há restrição, a mulher não é prioridade em casa. Ela fica com o que sobra do homem, que é a força produtiva, dos idosos e das crianças”, afirma Daniela Canella, professora do Instituto de Nutrição da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e pesquisadora do Nupens (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde).
“Nossa hipótese é de que racismo, vulnerabilidade social, piores condições de emprego e de vida estão contribuindo para o ganho de peso dessa população”, avalia.
O crescimento da obesidade está intimamente ligado ao consumo de ultraprocessados, com alto teor de gordura, açúcar e sal, que aumentou significativamente nos três quintos da população com menor renda familiar entre 2008 e 2018, segundo estudo de pesquisadores da USP (Universidade de São Paulo) publicado na Revista de Saúde Pública. Entre os 20% mais ricos, houve redução do consumo.
Ao analisar dados da POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares), o estudo concluiu que o aumento foi mais expressivo entre pessoas negras e indígenas, moradores da área rural e das regiões Norte e Nordeste e nos grupos populacionais com menores níveis de escolaridade.
A tendência é percebida na prática por quem atende a população negra e periférica, como a pediatra nutróloga Maria Paula de Albuquerque, gerente geral clínica do Cren (Centro de Recuperação e Educação Nutricional), organização que trata subnutrição e obesidade infantojuvenil.
“Há um recorte não só de renda, mas de gênero e raça na obesidade. Famílias monoparentais na periferia, lideradas por mulheres pretas ou pardas, se alimentam mal, porque estão em situação de insegurança alimentar”, explica.
“Isso não é o mesmo que passar fome. Insegurança alimentar é você querer fazer uma escolha alimentar saudável e não poder. Por exemplo, trocar peixe por salsicha porque é mais barato. Ou fazer macarrão instantâneo para seu filho quando chega em casa, depois de horas de deslocamento.”
Para a professora Canella, atribuir a responsabilidade pelos rumos da alimentação familiar a mulheres é injusto.
“Ficamos com essa verdade parcial de que a mulher foi para o mercado de trabalho e os ultraprocessados foram necessários para compensar. O problema não é a mulher trabalhar, é a tarefa não ter sido redistribuída na casa.”
A desigualdade se revela no peso que os gastos com alimentação têm para diferentes classes sociais. Entre famílias mais ricas, com renda superior a 25 salários mínimos, apenas 5% do orçamento é usado com essa finalidade (em média, R$ 671 mensais por pessoa).
Nas casas de famílias com renda de até dois salários mínimos, a porcentagem sobe para 26% (R$ 120 por pessoa), de acordo com estudo de 2020 do economista Walter Belik, realizado em parceria com o Imaflora (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola).
Outro achado foi que, em todas as regiões do país, gastos com alimentação se limitam a poucos produtos, que “não refletem a diversidade do que poderia ser produzido e consumido”, ressaltam os autores.
Os dez mais populares são arroz, feijão, pão francês, carne bovina, frango, banana, leite, refrigerante, cerveja e açúcar cristal.
“São 25% do salário para algo que seria um direito seu e metade da compra é baseada em dez alimentos, sendo só uma fruta. É uma dieta empobrecida”, avalia Albuquerque.
A Abia (Associação Brasileira da Indústria de Alimentos) afirma que, segundo a POF, 76% dos alimentos consumidos no país são processados.
“O processamento aumenta a disponibilidade de nutrientes nos alimentos, prolonga sua validade, reduz o desperdício e promove acesso a alimentos nutritivos e seguros a bilhões de pessoas em todo o mundo.”
E acrescenta que “é essencial que nutrientes como sódio, açúcar e gordura sejam consumidos com moderação, pois o excesso está associado a efeitos negativos para a saúde e que nenhum alimento, isoladamente, é capaz de causar ou curar doenças.”
Além do poder de compra, fator que limita a capacidade de fazer escolhas saudáveis é a existência de ambientes “obesogênicos”, marcados pelos chamados desertos alimentares —regiões que concentram alta oferta de produtos ultraprocessados e pouca ou nenhuma oferta de alimentos frescos, desde o entorno do metrô até regiões periféricas das cidades.
“É uma falácia dizer que essas mulheres vulneráveis, que moram em desertos alimentares, têm escolha. O CEP e a renda não permitem que elas efetivamente façam escolhas”, diz Albuquerque.
Para a especialista, é preciso mudar a narrativa de que o enfrentamento da obesidade e do sobrepeso é uma questão individual, pois está no âmbito das políticas públicas.
“A obesidade não pode ser tratada com prescrição de medicamento, dieta de 600 calorias e três horas de academia enquanto o cidadão não tem dinheiro para comprar gás.”
Fonte ==> Folha SP