“O tio pegou sua sobrinha, abusou sexualmente dela e a fez refém. Quem pode ajudar?” A questão faz parte de um jogo criado para adolescentes. Basicamente, perguntas são sorteadas aleatoriamente, e o jogador deve indicar entre oito instituições qual seria a mais adequada para se recorrer. Quem acerta ganha um chocolate. A aluna da vez escolhe o Conselho Tutelar. Os colegas discordam. Como inclui sequestro, é caso de polícia.
Atividades como essa, que abordam violência, assédio e machismo de um jeito lúdico, fazem parte do trabalho da Plan Internacional, entidade que atua em 85 países na defesa de meninas. A ONG entrou no Brasil pelo Maranhão há 27 anos. Também atua em São Paulo, Piauí e Bahia.
Ainda hoje trabalha no estado, dentro do chamado Triângulo dos Cocais, uma área tomada por coqueiros nos municípios de Peritoró, Timbiras e Codó, onde ela instalou a sede regional —e é nessa região que o trabalho de proteção a meninas adotou uma iniciativa diferente desde 2017: garantia de água tratada.
Segundo Cynthia Betti, presidente da Plan Internacional no Brasil, o projeto, que foi batizado de Água, Vida e Saúde, é o mais inusitado da entidade. Só existe lá, e ela defende que faz um enorme sentido na região.
A ida da Plan ao Maranhão levou em consideração os precários indicadores locais. São comuns na região o casamento precoce, a gravidez na adolescência (o que tira meninas da escola), o assédio sexual e o estupro. No levantamento mais recente, divulgado em 2023, o Maranhão teve o pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) entre os estados.
“Quando uma adolescente precisa fazer a sua higiene menstrual num rio, ela não está protegida sob nenhum aspecto, principalmente em termos de segurança física: ela pode ser violentada ali“, explica.
A Plan fura o poço, instala equipamentos e toda a rede para que a água chegue às casas. Depois, repassa ao órgão público responsável pelo saneamento básico, para que faça a manutenção.
Já finalizou sistemas em 16 locais, entre áreas semiurbanas, comunidades rurais e principalmente quilombos. Localizados em áreas mais distantes, esses locais acabam ficando no fim da fila na disputa pelo orçamento público. O patrocinador é o Norma Group, multinacional com sede na Alemanha, que está no mercado de produtos e serviços para abastecimento de água, irrigação e drenagem.
Um diferencial é a qualidade do estudo técnico, que prioriza a busca por fontes com vazão e qualidade —critérios que faltam em muitos poços já implantados.
Neste momento, a Plan inicia a perfuração nas comunidades Rocinha 1 e Rocinha 2, situadas em área rural, mas bem próximas da cidade de Peritoró. Já há poço no local, mas a oferta é insuficiente e irregular.
Por causa do crescimento populacional, algumas casas já nem podem ser ligadas a esse sistema precário. Maria José de Souza, 33 anos, por exemplo, depende, para tudo, de água retirada a balde de um poço improvisado no fundo do quintal, compartilhado com a vizinha. A missão da Plan é garantir um novo poço com volume para todos.
Em paralelo à implantação do serviço, a ONG dá cursos e treinamentos para que os moradores fiquem atentos à manutenção do sistema e saibam como ampliar os benefícios com uso da água.
Há um verdadeiro mutirão no quilombo Matões da Rita, também na área rural de Peritoró, para organizar o fluxo na horta comunitária enquanto o poço não fica pronto. Uma grande cisterna para recolher água da chuva foi instalada nas proximidades, mostra Antonio João Soares, 79 anos, o Tonhão, uma dos líderes comunitários mais antigos.
Na linha de frente de frente desse trabalho estão muitas mulheres, e as histórias que contam mostra como o trabalho pela garantia de água e o empoderamento feminino criaram uma conexão por lá. “Durante muito tempo eu pensei que era nada, hoje eu me sinto importante para essa comunidade”, diz Cristiane Aguiar da Conceição, 30 anos, integrante da equipe que trabalha na horta.
No quilombo São Benedito dos Colocados, zona rural de Codó, o sistema da ONG virou até segurança hídrica. Os moradores contam que sempre usaram para tudo a água do riacho não muito longe das casas. Com o avanço do agronegócio, veio também a aplicação indiscriminada de agrotóxico. A depender da época, o riacho até muda de cor.
Antiga liderança local, Valdivino Silva, 64 anos, diz que não fosse esse poço, a vida teria ficado ainda mais difícil. “Nunca facilitaram para gente ficar aqui e, até hoje, a gente precisa lutar para não sair”, explica na tentativa de contextualizar porque um serviço básico como água não chega a todos.
As razões para explicar a disparidades no atendimento público local são seculares, explica o professor Alex Lima, que coordena, na unidade de Codó, o curso de Ciências Humanas-História da UFMA (Universidade Federal do Maranhão).
Lima lembra que a região, a partir do século 18, era farta no cultivo de algodão e arroz, com intenso uso mão de obra escravizada. Negros que fugiram das fazendas fundaram inúmeros quilombos. Os coqueiros, que dão nome a região, foram essenciais na sobrevivência dessas localidades, garantindo amêndoa para alimentação, casca para queimar como carvão e palha para construção de casas.
A quebradeira de coco foi o personagem central dessa economia até bem pouco tempo. “A gente começava na lida ainda criança, e quebrava coco todo dia, até domingo”, lembra Raimunda da Conceição Nascimento, a Mundica, 67 anos. Moradora da comunidade Bacabinha, no interior de Codó, onde vivem várias quebradeiras, ela hoje vive da aposentadoria e quebra coco para ter produtos em casa.
Essas comunidades mantêm vivas memórias culturais, sociais e religiosas dos ancestrais. A própria cidade de Codó é referência em cultos de matriz africana, especialmente o Terecô. Essa corrente combina elementos afros, indígenas e católicos para cultuar os chamados encantados, entidades espirituais que representam ancestrais, caboclos e outras figuras simbólicas.
Ainda hoje, porém, há hostilidade a essas tradições. Por exemplo, foi colocado no pórtico de entrada de Codó os dizeres “Cidade de Deus”, na tentativa de reverter a imagem local de terra da macumba. Os quilombos, por sua vez, são cobiçados na disputada pela terra. A busca por pastagens e áreas para o plantio de grãos hoje derruba até os tradicionais coqueiros.
“A escravidão pode ter acabado para os negros, mas a liberdade ainda é para brancos”, diz João Evangelista Vieira Damasceno, 82 anos, o Doutor João, um dos fundadores de Boqueirão dos Vieira, na zona rural de Codó. A comunidade conseguiu ser reconhecida como quilombo, mas a homologação nunca saiu.
Boqueirão é um exemplo vigoroso de trabalho comunitário e uma espécie de vitrine da Plan, que atua no local há mais de 20 anos. Foi a primeira a ser atendida. Ali se consegue medir o efeito das ações no tempo.
Os moradores se preparam para implantar hidroponia. Os poços abertos pela Plan já irrigam uma horta comunitária ampla e diversa, que garante alimentação rica em vegetais para os moradores, e também é comercializada. Maria das Graças Albuquerque, 62 anos, uma das mais dedicadas, tem orgulho de cuidar das mudas e do plantio.
Ali também se mede o efeito do trabalho da Plan sobre as meninas e jovens, que foram crescendo e amadurecendo nas oficinas da ONG.
A professora Elzenir Vieira de Souza, 45 anos, já foi doméstica, mas passou a dedicar a vida a expansão do ensino na região e teve participação ativa na ampliação da escola. Secretária da associação local, acompanha todos os projetos e é a memória viva da participação comunitária.
A nova geração está indo para a universidade. A estudante de Agronomia Nailza Medeiros, 20 anos, conta que sua cabeça mudou quando era criança, por volta dos 10 anos, quando a Plan criou o time de futebol misto.
“Esse futebol foi uma grande polêmica”, conta. “Os meninos diziam que a gente só tinha de cuidar da casa. No futebol, entendemos que não. Podemos fazer qualquer coisa que um homem faz.”
Fonte ==> Folha SP