Opiniões de Vargas Llosa não reduzem sua literatura – 14/04/2025 – Ilustrada

A imagem mostra um homem sentado em uma cadeira, vestindo um terno escuro e uma gravata. Ele parece estar em um estúdio de televisão, com um olhar pensativo. Ao fundo, há uma tela de TV exibindo a imagem do mesmo homem. Na mesa ao lado dele, há um copo com bebida e um pequeno prato com um doce. Uma mão aparece à direita, apontando para ele.

Vivemos um tempo em que tudo parece contaminado pelas certezas, e uma das infelizes certezas que, nas últimas décadas, contaminou parte da crítica literária é a de que as opiniões e ações políticas de Mario Vargas Llosa, morto neste domingo aos 89 anos, invalidam ou reduzem sua obra literária.

Talvez seja melhor —na arte e na vida— suspender os julgamentos peremptórios. Deixo para outros os justos questionamentos ideológicos: me interessa o escritor extraordinário que publicou mais de 20 obras de ficção e esteve no centro de um movimento de intensa divulgação literária —batizado na década 1960 de “boom”— que transformou a literatura hispano-americana em sucesso de crítica e de vendas.

O primeiro livro de Vargas Llosa é de 1959, “Os Chefes”, um conjunto de seis contos que trazem pelo menos três marcas depois persistentes na obra do autor: o Peru como tema central, a abertura dos relatos sempre no momento de maior tensão do enredo e a combinação de temporalidades —as personagens recuperam e organizam suas lembranças para contar a história.

Quatro anos depois, o primeiro romance, “A Cidade e os Cachorros”, retoma esses recursos e expõe com crueza, em trama ambientada numa escola militar, como a disciplinarização extrema contamina as relações pessoais e se transmuta em violência institucionalizada.

Os cinco romances seguintes —de “A Casa Verde”, de 1966, até “A Guerra do Fim do Mundo”, de 1981 —talvez sejam o auge da produção de Vargas Llosa. “A Casa Verde” antecipa a mais destacada característica estrutural de sua escrita: casos diferentes alternam-se no relato e, embora à primeira vista não pareçam ligados, mantêm relações importantes.

Em “Conversa no Catedral”, de 1969 —para muitas pessoas, o principal livro do peruano—, quatro histórias com personagens e estilos literários distintos são contadas no decorrer de um longo encontro entre um jornalista e o antigo motorista de seu pai. No fundo, o tema da conversa é o Peru corrompido e brutal da ditadura militar de Manuel Odría, nos anos 1940 e 1950, mas a história do país surge fragmentada.

O romance explicita a influência do americano William Faulkner sobre Vargas Llosa: os “vasos comunicantes” entre as quatro histórias levam o leitor a estabelecer conexões entre elas e a notar que cada uma interfere na compreensão das demais, que os dramas nacionais e os dramas pessoais, ambos recheados de intrigas e mesquinharias, jamais se dissociam.

Os dois romances posteriores ao imenso sucesso de “Conversa no Catedral” retomam a estrutura de histórias interligadas, agora combinadas com humor corrosivo.

Os diálogos do protagonista de “Pantaleão e as Visitadoras”, de 1973 —um militar encarregado de organizar um serviço de prostitutas para tropas do Exército aquarteladas em áreas remotas— mostram a força do riso como arma crítica da instituição militar.

Já a história do casamento entre um sobrinho e sua tia —baseada em material biográfico do autor—, acrescida da gradual alucinação do novelista de rádio Pedro Camacho, faz de “Tia Júlia e o Escrevinhador”, de 1977, o romance mais divertido de Vargas Llosa.

“A Guerra do Fim do Mundo”, por sua vez, enfatiza um aspecto que ainda não havia ocupado o centro da elaboração literária do peruano: a pesquisa histórica como base da ficcionalização. Para escrever o romance que conta a Guerra de Canudos no Brasil dos anos 1890, Vargas Llosa visitou arquivos e percorreu vasta bibliografia sobre o tema.

Recebeu críticas de historiadores e romancistas, mas ajudou a consolidar o romance histórico contemporâneo —que abre mão da pretensão de substituir a historiografia, como pretenderam alguns romancistas do século 19— e demonstrou que ficção e história podem se iluminar reciprocamente, que a verdade pode ser contada com mentiras ficcionais.

Nos 15 anos seguintes a esse quinteto, Vargas Llosa publicou seis romances que tiveram razoável aceitação da crítica —talvez o de maior destaque seja o politizado “Lituma nos Andes”, de 1993.

Em 2000, “A Festa do Bode” o colocou de volta no centro da produção literária. A história do violentíssimo ditador dominicano Rafael Trujillo combina três relatos embasados em densa pesquisa histórica e prioriza a discussão sobre sexualidade —recorrente nos livros anteriores, mas nunca tratada como chave de compreensão da dinâmica política e social.

Depois do impacto de “A Festa do Bode”, a escrita regular do autor gerou, a partir de 2003, mais seis romances, que a maioria dos críticos considerou inferiores ao que o autor já fizera. Apesar de reproduzirem estruturas e estratégias narrativas, é simplista equiparar todos os livros.

O último dos seis, “Tempos Ásperos”, de 2019, de fato parece mostrar o esgotamento do modelo. Os dois primeiros do sexteto —”O Paraíso na Outra Esquina”, de 2003, e “Travessuras da Menina Má, de 2006— são bastante complexos e indicam o melhor do domínio técnico do autor, de sua capacidade de pesquisa histórica e da habilidade com enredos que delineiam a tensa relação entre público e privado.

Seu último romance saiu em 2023: Vargas Llosa declara no final do livro que “Dedico a Você Meu Silêncio” seria sua derradeira obra de ficção; depois dela, escreveria apenas um ensaio sobre o francês Jean-Paul Sartre, outra de suas referências centrais.

Para quem supunha que sua inventividade literária havia acabado, o romance é uma boa surpresa. A bela, paródica e patética história de Toño Azpicuelta revela a ascensão e a queda da ilusão de peruanidade.

O desfecho comovente e amargo do livro encerra simbolicamente a trajetória literária de um autor fundamental para compreender os rumos da literatura latino-americana da segunda metade do século 20 e de uma obra necessária, sobretudo, para quem gosta de ler e sabe que nenhuma declaração política estapafúrdia esvazia a inventividade de pensar o real através da ficção —traço decisivo da escrita de Mario Vargas Llosa.



Fonte ==> Folha SP

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