Uma portaria do Ministério da Pesca e do Ministério do Meio Ambiente incluiu o tubarão-azul, animal considerado quase ameaçado de extinção, na lista de espécies que podem ser exploradas pela pesca regular. No Brasil, a carne de tubarão é comercializada popularmente sob o nome de “cação”.
O documento foi assinado em 17 de abril, antes que o Brasil apresentasse o Parecer de Extração Não Prejudicial (NDF, na sigla em inglês), um estudo técnico que garante a sobrevivência do animal, como recomenda a Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção, da qual o país é signatário.
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Na última segunda-feira (28), organizações da sociedade civil, ambientalistas e pesquisadores enviaram uma nota técnica à ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, e ao ministro André de Paula, da Pesca, pedindo a revogação da medida.
“A referida portaria ignora princípios básicos de precaução e prevenção à degradação do meio ambiente, inclusive do ecossistema marinho, desconsiderando e negligenciando a análise de diretrizes e perspectivas que deveriam ser realizadas”, diz um trecho do documento.
O Ministério do Meio Ambiente disse que vai se pronunciar em breve sobre as manifestações das ONGs e especialistas científicos e que avalia com cuidado as contribuições fornecidas por esses segmentos.
O Ministério da Pesca e Aquicultura, por sua vez, afirmou que a portaria estabelece limites e normas mais rígidas de controle e monitoramento e que está alinhada com as práticas internacionais e com a gestão sustentável da prática pesqueira.
Segundo ambas as pastas, as discussões sobre a regulamentação ocorreram no Comitê Permanente de Gestão da Pesca e do Uso Sustentável dos Atuns e Afins (CPG Atuns e Afins), com representantes do governo, setor pesqueiro e pesquisadores de diversas instituições que ofereceram subsídios técnicos.
A população de tubarão-azul em águas brasileiras sofreu redução de cerca de 20% de 1990 a 2020, de acordo com o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade). A espécie é considerada quase ameaçada de extinção pelo Sistema de Avaliação do Risco de Extinção da Biodiversidade do órgão.
Segundo o biólogo marinho Marcelo Szpilman, o aumento da exploração comercial do tubarão-azul pode desiquilibrar o ecossistema marinho.
“É um animal que exerce um papel de predador de topo de cadeia e mantem equilibradas todas as espécies abaixo dele. O tubarão também se alimenta de animais doentes e mortos, o que ajuda a diminuir a quantidade de bactérias no mar”, explica.
O Brasil é o principal importador e consumidor de carne do animal no mundo. A pesca do tubarão-azul já acontece de forma incidental, ou seja, quando ele é capturado no meio da pesca de outras espécies regulamentadas, como o atum, que são o alvo principal da atividade.
Com a portaria, embarcações exclusivas de pesca do tubarão-azul passam a ser permitidas.
O comércio de carne e barbatanas do animal é altamente lucrativo. Em 2021, esse mercado foi avaliado em US$ 4,1 bilhões (cerca de R$ 7,9 trilhões), segundo relatório da organização WWF.
Para Nathalie Gil, presidente da ONG Sea Shepherd Brasil, a alta rentabilidade da exportação das nadadeiras foi responsável pelo aumento da pesca da espécie no Brasil. “A barbatana que vai para a China pode valer de 10 a 50 vezes o preço do quilo do resto do animal”, afirma.
Em 2024, a Sea Shepherd Brasil entrou com uma ação civil pública com pedido de liminar contra a União, denunciando a ausência de políticas públicas de proteção de espécies como tubarões e raias, substituídas por permissões de exploração econômica. A medida aguarda julgamento na 11ª Vara Federal de Curitiba.
Brechas regulatórias
De acordo com a portaria, os limites de captura do tubarão-azul serão definidos anualmente, conforme recomendação da Comissão Internacional para a Conservação dos Atuns do Atlântico (ICCAT, na sigla em inglês).
Em 2025, esse limite foi de 3.481 toneladas anuais. Mas, caso a cota não seja atingida, o texto também prevê que valor excedente seja abatido até dois anos depois.
Ainda segundo o documento, pelo menos 5% das embarcações de pesca deverão ter observador de bordo ou observador científico para garantir o cumprimento da cota estabelecida.
“Além de ser um número baixo, os observadores de bordo são contratados pela própria empresa e o cálculo [de tubarões capturados] é feito a partir de autorregistro, o que pode facilitar a ocorrência de fraudes”, afirma Gil.
Em 2023, o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) apreendeu 28,7 toneladas de barbatana de tubarões em embarcações que não cumpriam exigências regulatórias. Uma das espécies apreendidas está ameaçada de extinção.
Outro ponto polêmico na portaria, segundo especialistas, diz respeito ao chamado estropo de aço. O instrumento é um cabo de alta resistência usado junto aos anzóis para aumentar a captura de tubarões porque impede que o animal arrebente a linha.
O texto proíbe o uso do estropo de 31 de outubro a 1º de janeiro, período de alta temporada dos animais, mas permite o uso nos demais dez meses do ano, quando os tubarões podem ser capturados junto à pesca atuneira.
“O estropo é uma medida criada para pegar tubarão, mas não existe pescaria que utilize esse instrumento e seja sustentável”, diz o cientista pesqueiro Rodrigo Barreto.
Substâncias tóxicas
Pesquisadores da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) detectaram uma quantidade de arsênio 13 vezes maior que os limites permitidos pela Anvisa em uma carga de 22 toneladas de tubarão-azul, e num volume 6 vezes maior em outra carga de 55 toneladas.
O material, que vinha de Taiwan, foi detido pelo Ibama no porto do Rio de Janeiro porque estava sem autorização de despacho no Brasil. O órgão e a Fiocruz fizeram uma nova coleta de material em outras cargas do animal na última terça-feira (29).
“Com a sinalização de que há risco de contaminação por arsênio em toda carga de tubarão que entra no Brasil, estamos abrindo diálogos com o Ministério da Agricultura, Anvisa, Receita Federal e Ministério do Meio Ambiente para analisar como estabelecer uma regra que determine o procedimento de verificação em todos os portos brasileiros”, afirmou Rogério Rocco, superintendente do Ibama no Rio de Janeiro.
Além de arsênio, o tubarão costuma acumular grande quantidade de mercúrio, chumbo e cádmio, substâncias que apresentam riscos à saúde humana.
“O mercúrio não pode ser eliminado e se acumula no organismo. Quando atinge determinado nível, pode gerar problemas gastrointestinais ou neurológicos”, alerta o biólogo-marinho Marcelo Szpilman.
Fonte ==> Folha SP