O cenário emana a solenidade daquilo que é sagrado e religioso. À direita, estão imagens de são Cosme e são Damião e de santa Catarina de Alexandria. À esquerda, representações de são Pedro, santo Antônio e de Nossa Senhora Aparecida. Um elemento, porém, profana essa sacralidade.
Em destaque, no centro, uma pintura do cantor Roberto Carlos iluminada por luzes de neon. O altar erguido por Nelson Leirner transforma consumidores em devotos e faz da indústria cultural uma nova forma de religião.
Essa obra sintetiza o modo como a arte brasileira dos anos 1960 lançou um olhar atento e, por vezes, irônico à sociedade de consumo. Os artistas desse período incorporaram em seus trabalhos a estética da publicidade e as imagens dos veículos de comunicação de massa.
Essas características formaram aquilo que se convencionou chamar de nova figuração brasileira, uma espécie de arte pop tropical.
Fizeram parte desse movimento nomes como Claudio Tozzi, Antonio Dias, Rubens Gerchman, Wanda Pimentel e o próprio Nelson Leirner. Todos eles têm seus trabalhos reunidos agora na exposição “Pop Brasil”, a maior mostra deste ano da Pinacoteca de São Paulo. Em novembro, o projeto desembarca na Argentina, onde entrará em cartaz no Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires, o Malba.
Com 250 obras, a exposição radiografa uma sociedade à flor da pele, asfixiada pela ditadura militar, mas em ebulição pelo desejo de liberdade nas artes.
“A pop art brasileira declara mais as nossas faltas do que faz um elogio dessa performance da sociedade do espetáculo”, afirma Pollyana Quintella, que assina a curadoria da exposição com Yuri Quevedo.
Criada no Reino Unido durante a década de 1950, a o estilo ganhou tração nos Estados Unidos por influência de artistas como Claes Oldenburg e Roy Lichtenstein. Mas foi Andy Warhol quem mais radicalizou.
Nos anos 1960, causou furor ao pôr em galerias objetos que ocupavam as prateleiras dos supermercados, como latas de sopa e caixas de sabão em pó. Esses trabalhos, aliás, compõem a megaexposição sobre Warhol em cartaz no Museu de Arte Brasileira da Fundação Armando Álvares Penteado, em São Paulo.
“São obras muito polidas e lustradas, o que reflete o produto bem-acabado de uma industrialização americana que deu certo”, diz Quintella.
No caso brasileiro, a industrialização aconteceu de forma tardia, desigual e tortuosa. “Por isso, a nossa pop art guarda algo de pré-industrial.”
Um bom exemplo disso é “A Bela Lindonéia”, de Rubens Gerchman. Nessa obra, o artista criou a imagem de uma mulher com expressão taciturna sobre um porta-retrato adornado por miçangas e arabescos, num flerte com o artesanato.
Já Teresa Nazar entrelaçou modernidade e precariedade ao projetar sobre a tela um foguete enferrujado feito com sucata. A corrida espacial, inclusive, foi tema recorrente da arte brasileira desse período.
Claudio Tozzi traduziu esse frenesi em uma série na qual retrata astronautas em cores saturadas. Na Pinacoteca, dois desses exploradores não contemplam corpos celestiais, mas astros e estrelas da cultura popular. A tela em que eles aparecem foi posicionada de forma estratégica na frente de fotografias de personalidades como Sônia Braga e Chico Buarque.
Outra figura luminosa presente nesse núcleo é Che Guevara, retratado por Tozzi em meio a uma multidão. Para os curadores, essa tela é uma espécie de Marilyn Monroe às avessas —referência a um dos trabalhos mais célebres de Warhol.
De acordo com Quintella, o americano reproduziu a imagem da atriz tantas vezes que ela acabou se tornando oca, vazia de sentido e definição. O Che Guevara de Tozzi seria o oposto disso.
“Ele não é uma figura corrompida por esse processo de massificação. É um símbolo inteiro no meio do povo”, diz a curadora. “A pop art brasileira usa os mesmos procedimentos da anglo-saxão, mas subverte os seus significados.”
Essa mudança de perspectiva se traduz em sátiras aos Estados Unidos e à influência da potência sobre o Brasil. É o caso de “Homenagem ao Século 20/21”, pintura de Antônio Henrique Amaral em que duas figuras fardadas estão na iminência de devorar os emblemas que compõem a bandeira americana.
A obra integra um núcleo expositivo dedicado à ditadura militar, regime que recebeu o apoio da Casa Branca. Esse eixo leva ao público “Inserções em Circuitos Ideológicos”, um dos projetos mais emblemáticos de Cildo Meireles.
Nos anos 1970, o artista escreveu mensagens críticas ao regime militar em cédulas de dinheiro e garrafas de Coca-Cola e retornou os itens ao mercado. Desse modo, Meireles transformava símbolos capitalistas em porta-vozes de mensagens subversivas.
Outra obra notável é assinada por Tomoshige Kusuno, artista japonês radicado no Brasil. Fixado sobre uma grande tela, um portão de ferro parece guardar algo que deve ser contido e silenciado. Nove mãos de acrílico, porém, rompem a estrutura metálica. Elas estão prestes a se libertar do cativeiro, numa metáfora para a fragilidade da repressão diante do desejo pela liberdade.
Essa busca por autonomia sobre o próprio corpo em meio a ditadura fez emergir trabalhos que põem em evidência uma sexualidade por vezes ambígua.
Maria do Carmo Secco, por exemplo, pintou uma mulher de boca aberta naquilo que pode ser tanto um grito de dor quanto de gozo. Já Antonio Dias fez um autorretrato em que beija a própria imagem no espelho. É uma fotografia que sinaliza um exercício de independência e autossatisfação, mas também a recusa do encontro com o outro.
A exposição traz, por outro lado, obras em que o sexo é vivido de forma plena. É isso o que se vê no homoerotismo das imagens de Alair Gomes. O fotógrafo lançou um olhar voraz sobre o corpo masculino, retratando homens de músculos sempre esculpidos na praia de Ipanema.
Wanda Pimentel, por sua vez, elegeu como matéria-prima o corpo feminino. No entanto, se o fotógrafo revela, a pintora insinua. Nas telas, vemos fragmentos de pés, coxas e joelhos, em um erotismo nunca explicitado, mas sempre sugerido.
“Falar de desejo durante a ditadura é uma forma de se opor à repressão total”, diz Quevedo, um dos curadores. “Se por um lado havia um achatamento de tudo que é subjetivo, por outro existia uma explosão de coletividade que provocaria mudanças nos padrões sociais.”
Quevedo cita como exemplo as obras de Pimentel, em que suas personagens aparecem em espaços domésticos desordenados. “Nessas telas, o lugar da mulher é transitando na própria bagunça, e não costurando à espera do marido.”
Fonte ==> Folha SP