Por que Adultos Estão Cuidando de Bonecas? O Vazio Psíquico da Era Digital

Vivemos em um tempo em que o mal-estar psíquico é cada vez mais visível — e, paradoxalmente, mais silencioso. Nas redes sociais, a felicidade é performada, os traumas são suavizados por filtros, e os vazios existenciais são preenchidos por símbolos de compensação emocional.

Entre esses fenômenos, a ascensão dos bebês reborn — bonecas hiper-realistas que imitam bebês reais — surge como um exemplo curioso e profundo da intersecção entre carência afetiva, autoafirmação e sofrimento psíquico na era digital.

Não se trata de um julgamento moral sobre quem adquire ou se afeiçoa a tais objetos. Mas, como observa o especialista em gestão e comportamento humano, Rafael Desconsi, “é preciso compreender o que motiva o sujeito contemporâneo a investir tanto afeto, cuidado e até identidade em uma representação simbólica do vínculo humano”. Os bebês reborn não são simples brinquedos — para muitos, funcionam como mecanismos de reparação, preenchimento ou substituição emocional diante de perdas, traumas ou relações quebradas.

Byung-Chul Han, em A Sociedade do Cansaço, afirma que vivemos sob o peso de uma positividade tóxica, onde o sujeito é compelido a parecer feliz, produtivo e desejável o tempo todo. Essa exigência constante de performance leva ao esgotamento emocional e à perda de sentido. Como comenta Rafael Desconsi, “em um mundo onde não há mais espaço para fracassar ou demonstrar fraqueza, o sofrimento psíquico precisa encontrar formas alternativas de expressão — muitas vezes simbólicas, como o apego a objetos que representem vínculos afetivos”.

Ao mesmo tempo, a sociedade mergulha em uma hiperexposição narcísica nas redes. A busca por curtidas, validações e aprovação digital cria um ambiente onde a autoestima passa a depender do olhar do outro — muitas vezes, um olhar anônimo, fugaz e vazio. Essa ideia ecoa as reflexões de Zygmunt Bauman em Vida Líquida, ao afirmar que os vínculos sociais estão cada vez mais frágeis, e a identidade, cada vez mais moldada por aparências e consumos instantâneos.

Segundo Desconsi, “a lógica de autoafirmação digital tem produzido indivíduos cada vez mais performáticos, mas também mais frágeis emocionalmente”. O que parece força — a exposição constante — esconde, muitas vezes, uma profunda insegurança e um medo visceral de não ser visto.

Essa tensão entre o que somos e o que mostramos nas redes tem impactos evidentes na saúde mental. A ansiedade social, a comparação constante, a síndrome do impostor e o esgotamento emocional são apenas alguns dos efeitos colaterais de uma cultura centrada na imagem e no espetáculo. Sherry Turkle, em Alone Together, aponta como a tecnologia, ao invés de nos conectar de forma autêntica, muitas vezes amplia nossa solidão. Segundo ela, passamos a preferir conexões previsíveis e controladas com máquinas e objetos, em vez do risco emocional inerente às relações humanas.

Não por acaso, cresce a procura por estratégias simbólicas de conforto — como os bebês reborn, pets tratados como filhos ou realidades paralelas digitais. Desconsi pontua que “as novas formas de adoecimento mental não são desvinculadas da cultura que as produz”. Em outras palavras, o sofrimento contemporâneo não é apenas clínico, mas também sociocultural. A ausência de vínculos genuínos, a dissolução das comunidades tradicionais, a instabilidade das relações afetivas e a precarização do trabalho contribuem para um cenário onde os indivíduos tentam desesperadamente manter uma aparência de normalidade — mesmo que, internamente, estejam em colapso.

Esse colapso, porém, não costuma aparecer nos feeds. O que vemos é uma versão editada da vida: famílias perfeitas, maternidades idealizadas, conquistas ininterruptas e corpos inatingíveis. É nesse contraste entre o real e o projetado que se instala o sofrimento psíquico. Quando alguém se apega a um bebê reborn e compartilha nas redes uma rotina de cuidado simbólico, há ali uma narrativa de afeto — mas também, muitas vezes, um grito silencioso por conexão, acolhimento e pertencimento.

Donald Winnicott, psicanalista britânico, cunhou o conceito de “objeto transicional” para descrever itens simbólicos que ajudam o indivíduo a lidar com a ausência ou com o desenvolvimento emocional. Contudo, enquanto os objetos transicionais infantis ajudam a amadurecer, os substitutivos emocionais contemporâneos, quando exacerbados, podem manter o sujeito preso a uma realidade simbólica. Como aponta Rafael Desconsi, “o bebê reborn pode ser expressão de afeto, mas também pode ser sintoma. Cabe à sociedade — e especialmente aos profissionais de saúde mental — discernir os limites entre o simbólico saudável e o adoecimento subjetivo”.

Concluindo, o cenário atual exige uma reflexão profunda sobre os modos como lidamos com o afeto, a imagem e a identidade. A cultura da autoafirmação digital não é inofensiva. Ela está moldando comportamentos, reforçando padrões inatingíveis e, muitas vezes, agravando estados psíquicos frágeis. Em paralelo, surgem mecanismos simbólicos — como os bebês reborn — que nos falam da tentativa humana de restaurar vínculos em um mundo cada vez mais impessoal. O desafio, como pontua Rafael Desconsi, é encontrar formas de reconexão autêntica, onde o cuidado não precise ser terceirizado ao simbólico, mas possa acontecer de forma concreta, relacional e humana.

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