Quem são os ‘sem religião’ do Censo – 15/06/2025 – Cotidiano

Quem são os 'sem religião' do Censo - 15/06/2025 - Cotidiano

O Brasil é um país que anda com fé. Mas nem sempre você precisa de uma instituição religiosa para isso.

O número de brasileiros que declara não ter uma religião em particular vem ascendendo, até atingir os 9,3% de brasileiros no Censo 2022 —eram 7,9% em 2010.

Não vale tomar esse grupo por ateu ou agnóstico (que abre mão de confirmar ou negar a existência de Deus). Eles existem, claro, mas são uma fatia irrisória nessa conta. O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) não revelou quantos eram na última sondagem demográfica, mas há 15 anos os que diziam não acreditar em Deus, por exemplo, somavam 615 mil, ou 0,3% do povo.

A metodologia do Censo variou ao longo dos anos —como a decisão recente de excluir do recorte religioso crianças com menos de 10 anos. Ainda assim é seguro dizer que o salto foi expressivo. Em 1960, os “sem religião” representavam 0,5%. A parcela galopou para 4,8% em 1991, e 7,4% na virada do milênio.

Alguns estudiosos, ao erroneamente equivaler esse bloco a uma legião de descrentes, “saudaram os ‘ventos secularizantes’ que estariam soprando por uma sociedade brasileira cada vez mais laica e menos religiosa”, diz a antropóloga Regina Novaes.

Outros identificaram ali “a chegada da ‘religiosidade do eu’ no Brasil”, afirma a pesquisadora do Iser (Instituto de Estudos da Religião). Emergiam as “buscas religiosas individuais”, mais afinadas com uma pós-modernidade marcada pela globalização, “que resultava em maior circulação de símbolos religiosos de diferentes tradições ocidentais e orientais”.

Pesquisas vêm revelando, nesse meio-tempo, que não falta crença entre os entrevistados que se dizem “sem religião”, afirma. “Registravam-se respostas como: ‘Tenho fé, acredito em Deus, mas não tenho religião’, ‘não tenho religião, estou em busca’, ‘faço meu altar com meus deuses’.”

A ampla maioria do grupo, portanto, é de gente que crê em algo, mas não se apega a uma instituição religiosa. É uma forma mais fluida de se relacionar com o sagrado, que pode inclusive acontecer de uma forma bem sincrética.

É o caso daquela pessoa que reza a Ave-Maria, ouve louvor gospel, toma passe no centro espírita e joga búzios com o pai de santo, mas dispensa a estrutura formal de uma religião. Prefere um papo mais reto com Deus, ou deuses.

Essa tendência, segundo Novaes, é dinamizada pelas “novas maneiras de estar no mundo trazidas pelas redes sociais”. Também as religiões “se adaptam a um mundo com internet, onde torna-se possível ser religioso, sem religião”.

Outro fator que explica o crescimento gradual dos “sem religião” no Brasil: encolheu um bocado o pendor de se declarar católico porque seu pai, o pai do seu pai e o pai do pai do seu pai também o faziam.

Não por acaso esse grupo é popular entre os mais novos, afirma a antropóloga. “Os jovens de hoje cresceram num momento histórico de significativa diminuição da transferência religiosa do catolicismo da geração dos pais para a dos filhos. Vivem em famílias que já são plurirreligiosas, o que aumenta a possibilidade de buscar a própria religião, e numa sociedade cheia de incertezas e virtualmente muito conectada”.

É nesse cenário que “uma parcela, sem aceitar um ‘pacote pronto’ oferecido pelas instituições religiosas”, não se enquadra numa religião específica, afirma Novaes.

A analista comercial Miliane Araújo, 38, hoje se vê como parte dessa estatística. Mas já foi bem atuante na igreja evangélica que começou a frequentar 20 anos atrás. “Cantava, participava.” Até que largou mão.

Ela conta que, desde os 19 anos, “sofria horrores com miomas”. Anos depois foi escutar de uma médica que mulheres negras têm predisposição genética a esse mal. “Na tentativa de me conhecer melhor”, diz, passou a se interessar por religiões de matriz africana.

Isso foi um ponto de virada na sua vida. Não lhe descia a intolerância religiosa que diz ter visto em irmãos de fé, como orações “para tirar a pomba-gira da vida do marido”. Refletia: “Por que o Deus deles é o demônio?”

“Hoje não sei o que sou, no que acredito ou se acredito, mas não é naquele Deus das igrejas que frequentava.”

Para ela, a polarização política também pesou. “Veio a pandemia e principalmente, o Bolsonaro.”

Incomodou-a sobretudo o negacionismo que credita ao ex-presidente. “Pra quem não era a favor dele ficou impossível estar na igreja e ver aquelas pessoas falando as maiores atrocidades e absurdos em nome de Deus. Muita gente morreu de Covid, e falavam que eram outras doenças para poder corroborar com um discurso absurdo.”

Agora ela diz crer “em Deus, em Jesus, numa força que podemos denominar com quisermos, mas que não é uma mercadoria”. E, para ela, basta.

A locutora Ana Paula Lopes, 45, diz que “ainda acredita no espiritismo”, mas sem grandes apegos. Já foi católica. Perder um bebê com mais de seis meses de gravidez tirou-a do eixo religioso. “Fiquei totalmente descrente de tudo. Acho que as coisas são aleatórias mesmo, mas movidas a energia, e não a fé. Fé, pra mim, deixou de ser uma palavra usável.”

Idem para Filipe Tourinho, 35, garçom numa casa de jazz. Ele estudou numa escola cristã, e sua mãe se converteu batista quando a irmã lidava com um câncer. Levava o filho, então com 10 anos, aos cultos com ela.

“Fui levita [auxiliar no templo], líder de célula, preguei em emissora de rádio, frequentei a igreja assiduamente por um período de oito anos”, conta. Até que foi se afastando da fé. Desde 2020, engrossa a minoria ateia da população.

“Passei a enxergar a instituição igreja como uma grande farsa, um teatro, lugar majoritariamente para acolher os desamparados e os desassistidos, mas sem nenhuma intervenção miraculosa e com interesses escusos. Um ambiente que fomenta a manipulação psicológica, a atrofia intelectual.”

Miliane, Ana Paula e Filipe têm pontos de partida distintos, mas o de chegada é o mesmo: todos fazem parte desse bloco que abdica de uma religião para chamar de sua.

A maior concentração fica no Sudeste (10,5% da população local), embora a proporção mais alta esteja em Roraima, empatada com o Rio de Janeiro, ambos com 16,9%.

Homens são 56,2% desse estrato. É uma turma jovem. Seu maior percentual está na faixa entre 20 e 24 anos (14,3%), e a menor, na população octogenária em diante (4,1%). Entre os que prescindem de uma religião, pardos e brancos são mais numerosos, com 45,1% e 39,2%.

Para Christina Vital, que coordena o Laboratório de Estudos Socio-Antropológicos em Política, Arte e Religião na UFF (Universidade Federal Fluminense), o bloco poderia crescer um pouco mais se a metodologia do IBGE não tivesse mudado do Censo 2010 para o atual. “A não contabilização da faixa de 0 a 9 anos pode ter afetado o resultado.”

Isso porque, ela diz, muitas vezes famílias com mais de uma crença (mãe católica e pai evangélico, digamos) “vão dizer que o filho não tem religião, porque vai decidir”.

Vital sublinha o perfil jovem desse pessoal. “A gente vive um contexto em que as obrigações institucionais vão sendo questionadas. Pesa sobre os jovens uma conduta, às vezes, mais rigorosa, mesmo em termos de relação sexual, de aproveitar as oportunidades que estão disponíveis na vida nessa idade. É muito comum você ver um afastamento das igrejas nesse período, né? Tem todo um questionamento às autoridades de modo geral.”



Fonte ==> Folha SP

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