Quilombo no pantanal vive crise após anos de seca e fogo – 16/08/2025 – Ambiente

A imagem mostra uma vista aérea de uma área urbana cercada por vegetação. À esquerda, há uma ponte que atravessa um rio de águas escuras. Abaixo da ponte, é visível uma pequena ilha de terra no meio do rio. À direita, há uma parte da cidade com casas e ruas, cercada por árvores e vegetação densa. O céu está limpo e a luz do sol ilumina a cena.

O quilombo Águas do Miranda, em Bonito (MS), hoje com cerca de 35 famílias, se formou às margens do rio que dá nome à comunidade. A relação com a água vai além da paisagem, o rio é fonte de renda, com o turismo e a pesca artesanal, e os peixes são a base da alimentação local. No entanto, as secas severas e o fogo de 2020 e 2024 atravessaram a vida dos moradores que ainda tentam se recuperar dos prejuízos.

“Hoje, se alguém disser que vive da pesca está mentindo. O peixe tá escasso, e o turismo também caiu muito”, conta Ivanice Rosa, 45, moradora da região há mais de 20 anos.

Ivanice, que vive com suas três filhas e três netas, é professora de educação infantil na escola que atende o quilombo. Ela já trabalhou como pescadora e piloteira e conta ter criado as filhas na beira do rio com o ex-marido. A família costumava acampar nas margens para aproveitar a pesca durante a noite.

O desmatamento e o assoreamento do rio, porém, fizeram com que a quantidade de peixes diminuísse e, com isso, o ganho de quem trabalha com a pesca foi menor ano após ano. O quadro se agravou após as queimadas do último ano, quando os moradores começavam a se recuperar dos prejuízos deixados pelo fogo de 2020.

Em 2024, o pantanal teve 2,6 milhões de hectares queimados, cerca de 17% da área total do bioma, segundo dados do Lasa (Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais), da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Os números só ficam atrás dos incêndios de 2020, que queimaram 3,6 milhões de hectares.

A alternativa para quem mora no quilombo é complementar a renda com outro tipo de trabalho fora da comunidade. Para as mulheres, a situação é ainda mais complicada porque, muitas vezes sem renda própria, elas são as responsáveis por fazer a gestão dos recursos escassos.

Este é o caso de Eliane de Santos Ribeiro, 38. Dona de casa, ela mora na comunidade há 15 anos com o marido e os cinco filhos. Ela relata que, apesar da melhora do nível da água no rio, o ano todo foi de prejuízos.

“Foi ruim desde o começo do ano passado, e é com o trabalho no rio que entra dinheiro, entra um alimento. E, se não entra, a gente ainda tem conta para pagar: água, luz, aluguel”, diz.

As mudanças no ambiente limitam a rotina dos ribeirinhos e levam à perda de espécies de plantas e animais com os quais convivem e utilizam para a subsistência, explica Zoraida Fernandez, pesquisadora em saúde pública da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) em Mato Grosso do Sul.

“O nível dos rios diminui e o acúmulo de matéria orgânica e das cinzas, produto das queimadas, acaba gerando contaminação das águas”, diz.

A quantidade de oxigênio na água cai e, por isso, muitos peixes morrem. Com o curso d’água contaminado, aumenta o risco de contrair doenças gastrointestinais, o que deixa a comunidade ainda mais exposta à insegurança alimentar.

Zoraida ressalta a importância de ações do poder público que atendam as demandas das comunidades tradicionais, pois elas dependem diretamente das opções que o bioma oferece e, com a perda dos recursos naturais, as pessoas podem ser obrigadas a deixar suas casas, em busca de melhores condições de vida, “muitas vezes perdendo os seus costumes e até seu conforto”.

Evanir Rosa Cardoso, 42, membro da associação de moradores da comunidade, conta que o marido, Ederson, pescador e piloteiro, precisou buscar trabalho fora do quilombo. “Ele largava do rio e ia embora sozinho, procurar serviço de construção para a gente poder manter a casa.”

Na época de cheia, lembra, a família costumava se preparar para os meses em que a pesca artesanal fica proibida, durante a piracema, para proteger o período de reprodução dos peixes, de novembro a fevereiro —quando pescadores artesanais recebem o Seguro Defeso, benefício no valor de um salário mínimo.

A seca, porém, impediu o trabalho no rio durante todo o ano. Com o baixo nível da água, não era possível navegar ,e o fogo impossibilitou a ida de turistas até a região.

O conhecimento de Ederson no trabalho com construção evitou que faltasse comida para os dois filhos do casal. “Aí você vai no rio para pegar um peixe para comer, você não pega, porque não tem. Quem sabe se virar, se vira de qualquer maneira. [A seca] é uma coisa que foge do controle de todo mundo daqui, né? Já imaginou, quem não sabe viver de outro serviço?”, reflete.

Hoje, Evanir trabalha como professora substituta na escola da comunidade e está cursando pedagogia para se tornar efetiva. Uma das lutas da associação de moradores, afirma, é conseguir oportunidades de trabalho no quilombo. “Quando a gente está se recuperando, vem a outra seca, e é muito raro ter emprego aqui.”

Uma de suas preocupações é que os empregos permaneçam na comunidade, para que a região não se esvazie e acabe por extinguir as práticas culturais locais.

A opinião é compartilhada por Amarílio Modesto da Silva, 86. Líder comunitário, ele acompanhou todo o processo de reconhecimento do território como remanescente de quilombo. “O rio é bastante importante para a comunidade para gerar renda. Aqui, antigamente, a gente vivia só de pesca.”

“Para nós foi um um prejuízo muito grande. Vamos ver agora, nessas baixas do rio, como é que vai ficar”, conta, preocupado com o cenário que presenciou nos últimos anos.

Apesar das dificuldades enfrentadas pela comunidade, ele se diz orgulhoso do legado de seu território. Amarílio, de tão respeitado na comunidade, é chamado pelas pessoas de avô, mesmo por quem não tem laços biológicos com ele.

Depois de décadas à frente da luta para estabelecer a comunidade, ele ressalta a importância de preservar os recursos naturais da região, que permitem que a comunidade conviva com a natureza.

“Não tem um lugar que eu já andei neste mundo que seja melhor para viver do que aqui. Por quê? Porque aqui é o seguinte: nós temos o rio ali; se a pessoa não pode comprar um peixe ou um quilo de carne, vai no rio e pega um peixe. Lá fora é tudo comprado, e aqui não. As pessoas se ajudam, aqui a nossa comunidade é muito unida.”


ENTENDA A SÉRIE

A série de reportagens “Cicatrizes no Pantanal” aborda impactos na saúde, na educação e nos modos de vida de comunidades após as queimadas históricas de 2020 e 2024 no bioma. O trabalho é parte do projeto Excluídos do Clima, uma parceria da Folha com a Fundação Ford.



Fonte ==> Folha SP

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