Resposta: Parditude não se confunde com obra de Gilberto Freyre – 30/05/2025 – Ilustríssima

Um homem idoso, com cabelo grisalho e bigode, está sentado em uma cadeira, gesticulando com as mãos enquanto fala. Ele usa um terno cinza e uma gravata. Ao fundo, há um painel de cortinas e um alto-falante visível na lateral esquerda da imagem.

[RESUMO] Em resposta a artigo do historiador Roberto Pereira, autora sustenta que há um abismo epistemológico entre a noção de parditude e a narrativa freyriana e critica a cobrança de movimentos sociais para que pardos se reconheçam como negros, ao mesmo tempo que a condição mestiça é negada.

Nesta semana, o historiador Roberto Pereira publicou o artigo “Neonegros e neofreyrianos podem retroceder debate racial do país” na Folha, talvez a análise mais dedicada que vi até agora sobre os desdobramentos do meu trabalho. Diante da relevância do texto e da honra que é ser diretamente mencionada, solicitei a possibilidade de replicá-lo.

É fundamental, para início de conversa, distinguir que a parditude não se limita a mais uma pesquisa sobre mestiçagem: trata-se do primeiro movimento antirracista brasileiro centrado especificamente nas demandas e vivências multirraciais, elaborado a partir da enunciação dos próprios sujeitos mestiços.

Diferentemente disso, a obra de Gilberto Freyre não foi um movimento antirracista, tampouco foi produzida a partir da experiência concreta dos mestiços enquanto sujeitos políticos narrando suas vivências.

O trabalho de Freyre foi uma leitura da formação racial brasileira marcada por um tom romantizado, idealizado e conciliatório, que suavizou as tensões do racismo sob a ótica de uma suposta harmonia entre as “três raças”. Há, portanto, um abismo epistemológico e político entre a parditude e a narrativa freyriana: o que está em jogo não é apenas o objeto de análise —a mestiçagem—, mas com que finalidade política se constrói o discurso.

Outra correção fundamental a ser feita é que a análise proposta pela parditude não se baseia em essencialismos, mas em uma perspectiva materialista. A experiência multirracial é concreta, não uma abstração identitária. Ainda que a raça seja, do ponto de vista biológico, uma construção social, seus efeitos sociopolíticos são absolutamente reais —e se manifestam de forma diferente conforme a materialidade corporal dos sujeitos.

É inegável, por exemplo, que os corpos e as culturas de pessoas brancas de ancestralidade europeia se constituem de maneira diversa em relação aos corpos e culturas de pessoas negras de ascendência africana, por exemplo (ainda que o grupo pardos contenha outras misturas no Brasil).

Quando pessoas desses grupos se cruzam, seus descendentes herdam traços que podem se inclinar mais para um lado ou compor uma síntese visível —é justamente nessa interseção concreta e ambígua que se configura a experiência da parditude. Ser mestiço não é abstração: é corpo, é cotidiano, é contradição vivida.

Essa condição incide diretamente sobre nós: nas interações sociais, nos marcadores culturais, nas trajetórias institucionais e nas elaborações subjetivas. O que está em jogo não é uma escolha identitária livre entre “um lado ou outro”, mas o reconhecimento de uma experiência que é, em si, constituída pela mistura. Somos aquilo que a história produziu em nossos corpos. Isso precisa ser politicamente nomeado e epistemologicamente reconhecido.

A chamada engenharia identitária evocada por Pereira —ou o “convite” do movimento negro aos pardos para que se reconheçam como negros— merece um olhar mais atento. Trata-se de uma importação de categorias dos EUA, como aponta Kabengele Munanga em “Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil”, adotada a partir dos anos 1970 com o intuito de unificar as lutas raciais no Brasil.

Contudo, em sua forma implícita, essa convocação pode soar assim: “Reconheça como os brancos te maltrataram, então junte-se a nós e escolha apenas a sua parte negra ou indígena”.

Embora seja legítimo e necessário que pessoas mestiças se aliem às lutas negras e indígenas e muitas o façam de forma comprometida, a questão é: se essa aliança só se concretiza à custa da negação de nossa completude, que tipo de pertencimento é esse?

Em um país como o Brasil, cuja história é atravessada por intensos processos de miscigenação —por vezes coercitivos, é verdade, mas não só—, exigir que sujeitos racializados pardos escolham apenas uma parte de sua herança é, em última instância, reforçar fantasias de pureza racial.

A ideia de pureza racial, mesmo quando mobilizada sob o signo da resistência, tem origem em sistemas de pensamento racialistas e excludentes, sendo uma das bases de discursos intolerantes e práticas genocidas ao redor do mundo.

Digamos que, ao receber esse “convite” do movimento negro, eu diga: agradeço, aceito lutar por justiça racial. Afirmo minha ancestralidade africana, apesar dos múltiplos tons de pele, aceito afirmar estéticas como o black power, os dreads e os penteados afro. Mas participarei dessa luta sem abrir mão de me reconhecer como mestiça, porque é isso que eu sou.

Por que não pode? Por que, ao fazer essa escolha consciente, sou acusada de retroceder ou sou alvo de silenciamento e desqualificação? Achei que fosse um convite, mas parece uma exigência.

Achei muito interessante o conceito de neonegros e a análise dos fenômenos nas redes sociais, mas interpreto de outra forma.

Nas décadas a partir dos anos 1970, quando o movimento negro defendia uma identidade monorracial e rejeitava identidades mestiças, essas disputas aconteciam em círculos restritos de militância e da academia, espaços ocupados por uma minoria engajada. A maior parte da população racializada nas periferias brasileiras, historicamente excluída do acesso à educação, estava imersa na luta diária por sobrevivência —também por isso, fora do alcance desses debates.

Foi só com a ampliação do acesso à internet, principalmente após a primeira década deste século, que essas conversas começaram a chegar à população de forma mais ampla. A partir disso, esses discursos binários sobre raça, o desprezo ao termo mulato ou moreno, passaram a circular na chamada boca do povo.

Os aqui chamados neonegros, longe de serem amadores, são, na verdade, o resultado direto de uma causa concreta: a cultura popular brasileira reconhece os mestiços como distintos tanto dos negros quanto dos brancos. Quando se impõe uma lógica binária —ou branco ou negro—, pessoas brancas nos jogam para negros; pessoas negras, por sua vez, nos jogam para brancos.

Quando “neonegros” negam o pertencimento racial de pessoas pardas, estamos diante do efeito prático da engenharia mencionada por Pereira. A imposição de um modelo binário e monorracial, que apaga a existência mestiça, ao ser disseminada amplamente, gerou este efeito colateral preocupante: o apagamento dos mestiços e sua exclusão dos debates raciais.

Esse sintoma revela, de forma inequívoca, que o modelo identitário em questão não está apenas incompleto, está falhando em dar conta da complexidade racial brasileira. Se a ponte que nos acolheria se torna muro, algo falhou no projeto.

Essa situação precisa ser encarada como um sinal de alerta: podemos reconhecer os impasses, rever caminhos e construir coletivamente um debate racial mais honesto e inclusivo ou continuaremos presos a disputas que pouco dialogam com a realidade vivida pela maioria?



Fonte ==> Folha SP

Leia Também

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *