[RESUMO] Autor sustenta que a definição do país responsável por selar a derrota de Hitler se tornou o principal terreno de disputa da historiografia sobre a Segunda Guerra Mundial, influenciado pelo conflito entre EUA e URSS durante a Guerra Fria. O revisionismo ocidental, escreve, vem distorcendo eventos históricos para minimizar o papel do Exército Vermelho e justificar a teoria dos dois demônios, que compara a URSS ao regime nazista.
Batizou-se de Guerra Fria o período no qual, de 1947 a 1991, o mundo se viu dividido entre o campo capitalista, liderado pelos Estados Unidos, e o socialista, comandado pela União Soviética. Muitas foram as frentes desse conflito —entre elas, a historiografia. O principal choque de narrativas deu-se sobre a luta contra o nazifascismo e se estende até os nossos dias.
Cumpria papel ideológico e cultural fundamental definir qual teria sido a força decisiva na derrota da Alemanha hitlerista, empreitada na qual os soviéticos estiveram aliados às democracias liberais. Inserido na disputa geopolítica, esse debate sempre foi reavivado, nos últimos 20 anos, pela decadência do bloco ocidental.
Os fatos de guerra, porém, constituíam enorme obstáculo para o discurso antissoviético. Mais de 25 milhões de cidadãos da primeira pátria socialista haviam sido mortos, contra cerca de 1 milhão de norte-americanos e britânicos. Quando ocorreu o desembarque na França, em junho de 1944, a sorte dos alemães já estava selada: os soldados da URSS haviam quebrado a coluna vertebral dos exércitos inimigos na Batalha de Stalingrado, finalizada em fevereiro de 1943, e marchavam rumo a Berlim.
Alguns estudiosos exaltam a ajuda material norte-americana à URSS, mas os próprios dados acessíveis nos Arquivos Nacionais dos EUA revelam um suporte periférico.
A Lei de Empréstimos e Arrendamentos, aprovada em 1941, permitiu o fornecimento de armas e equipamentos no montante de US$ 50 bilhões. Desse total, somente US$ 11,3 bilhões foram destinados à URSS —aproximadamente US$ 180 bilhões em valores atuais contra cerca de US$ 280 bilhões que os EUA, o Reino Unido e a União Europeia forneceram desde 2022 à Ucrânia, em uma guerra de envergadura infinitamente menor.
Esse aporte foi importante para resolver estrangulamentos específicos da logística soviética, deficiente em transporte, com a entrega de caminhões e locomotivas que chegaram a representar mais de 35% dos meios de mobilidade. Em seu livro “Russia’s Life-Saver: Lend-Lease Aid to the U.S.S.R. in World War II”, o norte-americano Albert L. Weeks, assessor do Departamento de Estado, reivindica que o auxílio prestado foi essencial em vários setores, mas não contesta os números soviéticos, de que seu volume ficou apenas entre 4% e 10% de toda a produção industrial da URSS de 1941 a 1945.
Durante a beligerância antinazista, de toda maneira, o protagonismo da URSS foi ressaltado pela indústria cinematográfica e a imprensa estadounidenses, que contrabalançavam tal predomínio com a exaltação de batalhas no oceano Pacífico contra o Japão imperial, depois incorporando o desembarque na Normandia e outras façanhas. Poucos meses após a derrocada do Eixo, tudo mudou: uma escalada de filmes, livros e estudos acadêmicos foi desatada para reescrever a história e torná-la útil na nova jornada anticomunista.
As batalhas travadas pelos soviéticos foram sendo atiradas ao limbo, enquanto feitos ocidentais, como a retirada de Dunquerque (1940) e o Dia D (1944), viravam epopeias e passavam a ser apresentados como mitos fundadores da saga antinazista.
Ainda que essa campanha tenha colhido frutos na opinião pública internacional, mesmo na contramão da realidade, era insuficiente para transformar Josef Stálin e seus companheiros de heróis antinazistas em inimigos da democracia. Não bastava a crítica aos abusos autoritários, verdadeiros ou falsos, da experiência socialista: era necessário aparentá-lo ao nazismo, para que a bandeira democrática fosse, de vez, um monopólio do Ocidente.
Nazismo e bolchevismo deveriam ser tratados como irmãos de berço, separados ao nascer. Aspectos pontuais vieram a ser descontextualizados, destacados e comparados para justificar a teoria dos dois demônios, embalada sob o conceito de totalitarismo e lapidada por liberais como Hannah Arendt.
A contradição central da humanidade, pelas lentes da Guerra Fria, era exibida como uma queda de braço entre sistemas democráticos e regimes totalitários. Mas haveria sempre espaço, na primeira categoria, é claro, a ditaduras sanguinárias que tivessem sido impostas para conter o risco, real ou imaginário, de revoluções socialistas.
O episódio mais relevante para provar o suposto parentesco do comunismo com o nazismo tem sido, nesse longo período, o Pacto Molotov-Ribbentrop, assinado em 23 de agosto de 1939 pelos chanceleres da URSS e da Alemanha. Seria a evidência definitiva do renascimento, em pleno século 20, dos irmãos Abel e Caim.
O Parlamento Europeu decidiu, em 2009, consagrar a data desse acordo como dia da memória das vítimas de todos os regimes totalitários. A escolha foi justificada por considerar o tratado germano-soviético o estopim do conflito mundial, ao repartir a Polônia e os Estados bálticos, que supostamente teria aberto caminho para a ação alemã em 1º de setembro de 1939.
Essa posição omite as circunstâncias daquele pacto e falsifica seu alcance estratégico. Simplesmente ignora o empenho soviético, desde 1933, para estabelecer uma coalizão com as democracias liberais contra Hitler, frustrada pela preferência ocidental em incentivar que a tirania nazista atacasse e destruísse a URSS.
Sob a liderança de Stálin, Moscou aderiu à Liga das Nações pouco depois da ascensão do hitlerismo ao poder. A partir de 1934, a Internacional Comunista adotou como linha política a construção de frentes populares contra o fascismo, enquanto expoentes liberais continuavam flertando com Mussolini e Hitler.
A prova de fogo foi a Guerra Civil Espanhola, detonada por um fracassado golpe em 1936. Os franquistas receberam pleno apoio da Alemanha e da Itália, enquanto os republicanos eram acolhidos pela solidariedade soviética —e os governos ditos democráticos lavavam as mãos no sangue de Guernica.
Naquela mesma época, de 1933 a 1939, vários governantes preferiram estender a mão ao ditador nazista. Projetavam que sua sede expansionista, conforme anunciado em “Minha Luta” (1925), estaria limitada ao país dos sovietes. Apostavam que a pugna pelo espaço vital germânico, o “Lebensraum”, mediante acenos diplomáticos e concessões territoriais, poderia poupar outras nações.
A Polônia de Józef Pilsudski puxou a fila, em 1934, assinando um pacto de não agressão com Berlim, seguida por outros governos. O ápice dessa estratégia ocorreria em setembro de 1938, quando Reino Unido e França aderiram ao Acordo de Munique, subscrito também por alemães e italianos, pelo qual parte da Tchecoslováquia —a região dos Sudetos— foi cedida a Hitler. Tratava-se da política de apaziguamento advogada pelos primeiros-ministros Neville Chamberlain e Édouard Daladier, sua resposta objetiva aos apelos recorrentes da URSS por uma frente antinazista.
Como está registrado no livro “Stalin’s Wars”, do historiador inglês Geoffrey Roberts, o chefe comunista ainda tentaria, nos meses seguintes, dobrar Londres e Paris. Apresentou uma derradeira proposta de proteção à Polônia e à Romênia contra o regime nazista, dispondo-se a mover suas tropas até a fronteira alemã, pelo território polaco, desde que contasse com o engajamento franco-britânico em uma tripla aliança militar contra Hitler.
Os líderes poloneses e romenos, ferrenhamente anticomunistas, recusaram-se a dar passagem aos soldados soviéticos. Chamberlain e Daladier cruzaram os braços, insistindo que as conversações continuassem exclusivamente no plano diplomático. Stálin sentiu cheiro de traição no ar. Aos seus olhos, França e Reino Unido estavam empurrando a Alemanha para cima da União Soviética. Virou o jogo e mudou de tática. O resultado seria a assinatura do Pacto Molotov-Ribbentrop.
Considerando que a economia e a defesa de seu país precisavam de prazo para estarem à altura de uma guerra solitária contra a Alemanha, o sucessor de Lênin tratou de convencer Hitler de que uma ofensiva a oeste seria sua melhor opção. Em troca de um cordão sanitário que deveria ir da Finlândia ao trio báltico (Estônia, Letônia e Lituânia), passando por um pedaço do território polonês, Stálin assumia um compromisso de não agressão e oferecia outras facilidades para os exércitos alemães.
Ganhar tempo e se fortalecer ao máximo possível eram os objetivos soviéticos. A guerra era inevitável, mas foi adiada por quase dois anos. A URSS só entrou em combate quando atacada. Essa prorrogação terá sido decisiva? Só nos resta julgar pelo desfecho que conhecemos: a invasão alemã de 1941 deparou-se com a mais tenaz resistência que o mundo já viu e terminou com a chegada épica do Exército Vermelho na capital alemã.
O hasteamento da bandeira soviética sobre as ruínas do parlamento germânico deu vida à foto mais marcante de como terminou o maior de todos os embates militares. Desde então, a sôfrega missão do revisionismo histórico tem sido apear e destruir, pelas armas da propaganda, o estandarte que simbolizou o fim do regime nazista.
A verdade, contudo, é que Moscou continua a ser o lugar certo para celebrar a capitulação do Reich de mil anos.
Fonte ==> Folha SP