Já se passaram cinco anos de sua morte, mas Rubem Fonseca ainda fala. Logo mais, em maio, chega seu centenário, e sua voz continua inconfundível.
Que o diga a editora e escritora Bia Corrêa do Lago, filha do autor. Desde 2020, ela vem pesquisando o arquivo deixado pelo pai, hoje em cerca de 60 caixas, que a cada dia revelam mais sobre ele. “Estou mantendo meu pai vivo”, diz ela em uma conversa no Rio de Janeiro. “Quando acabar este ano, ele vai morrer, né?”
Não vai. Se não fosse pela obra em si, formada por dezenas de contos e romances que mudaram o rumo da literatura brasileira, seria pelo sem-fim de possibilidades que o acervo deixado por Rubem Fonseca apresenta.
É surpresa atrás de surpresa. O conjunto reúne bilhetes, correspondências, datiloscritos anotados, manuscritos, caderninhos, fotografias mil, textos inéditos de ficção e não ficção —até as declarações de Imposto de Renda de uma vida inteira estão lá.
“É um acervo como poucos escritores brasileiros têm”, diz o editor e colecionador de manuscritos Pedro Corrêa do Lago, marido de Bia e um dos principais conhecedores de arquivos históricos do Brasil, que tem colaborado na exploração do material.
Na semana passada, os dois receberam a Folha para mostrar parte desses documentos pela primeira vez a um jornalista —tipo de criatura, diga-se, que Rubem Fonseca evitou por décadas, discretíssimo que era.
Bia escava matéria para uma fotobiografia do pai, com previsão de lançamento para este ano pela editora do casal, a Capivara. É um trabalho que vai não só engrossar a parca iconografia de um autor que escapava da imprensa, mas também revelar aspectos de sua vida que até a filha conhecia pouco.
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Um pedaço das descobertas já vai parar em livro: dois textos inéditos foram incluídos na edição de contos completos a ser lançada pela Nova Fronteira em maio, como parte das comemorações pelo centenário do autor, no dia 11.
“Natal” e “Arinda” são de 1948 —ou seja, antes da estreia de Rubem Fonseca na literatura, em 1963, com “Os Prisioneiros”. E do baú de onde saíram há muito mais. “Achei muitos contos da juventude. Esses dois são de quando ele tinha 20 e poucos anos, mas tem muitos com 17, 18 ou 19 anos”, afirma Bia.
Os textos juvenis poderiam, em tese, apontar para a solução de um mistério de décadas. Mais de 20 anos antes de sua estreia literária, Rubem Fonseca tentou publicar um volume de contos —mas o editor a quem entregou o livro perdeu o original, que era a única cópia.
Alguma chance de os textos no arquivo serem os contos perdidos? “Não tenho como saber se são cópias do que ele entregou à tal editora ou se são o refugo que ele não usou”, afirma Bia.
De todo modo, há outros exemplares da juventude, como um conjunto de textos batizados de “romances de oito linhas”, com narrativas brevíssimas. Um datiloscrito desse grupo, intitulado “Veritas”, é de quando Fonseca tinha 18 anos e fala de um escultor que tenta “modelar a Verdade”. “De repente, num assomo, o escultor quebrou-a. E nunca mais tentou esculpir coisas que não existem”, escreveu.
“Desde jovem, a literatura dele já tinha uma desilusão, falava de uma impossibilidade de felicidade, de completude ou de conhecer o outro… É uma literatura de várias camadas”, diz Bia.
Outra das descobertas é um datiloscrito anotado do conto “Feliz Ano Novo”, do livro de mesmo nome que foi um dos maiores best-sellers de Fonseca —foi censurado pelo regime militar, em 1976, e publicado de novo mais de 20 anos depois.
No campo da ficção, há ainda um romance epistolar chamado “Manuel e Léia” e fichas preparatórias que indicam que o conto “Onze de Maio”, incluído em “O Cobrador”, de 1979, pode ter sido pensado inicialmente como um romance.
Uma das partes mais valiosas do acervo do escritor é a correspondência, que tem um volume surpreendente se considerarmos que Zé Rubem, como era conhecido pelos mais próximos, começou a usar computadores cedo.
Pedro Corrêa do Lago trabalhou na organização dessas cartas. Há mensagens curtas em tom de galhofa, na qual João Ubaldo Ribeiro, por exemplo, se gaba de suas posses tecnológicas: “Meu caro amigo Zé Rubem, me desculpe a franqueza, mas sua impressora não é de homem”.
A coleção ainda tem bilhetes curtos de Chico Buarque (“Me diverti à beça com a leitura de ‘O Buraco na Parede’”) e Isabel Allende (“Uma pena não ter visto você em Berlim”), entre outros.
“Tinha também as cartas com os tradutores, agora separadas”, aponta Pedro, antes de fazer um acréscimo rindo. “E até as cartas de uns chatos.”
Nessa lista, estão alguns escritores que enviavam originais em busca de conselhos, embora nem todos fossem de fato chatos e alguns tenham se tornado pupilos do autor de “A Grande Arte”. Zé Rubem não só respondia como guardou cópias de parte dessas respostas, sempre sinceras.
O acervo tem também algumas cartas enviadas por Rubem. Nos cerca de 20 anos em que foi executivo na Light, tinha secretárias que organizavam sua correspondência —e se preocupava em fazer cópias das respostas que recebia no cargo. Também guardou cartas da família, como missivas que recebeu do irmão dentista que foi servir na Itália durante a Segunda Guerra Mundial.
Ao mesmo tempo, os admiradores da obra do escritor, conhecido pela prosa, talvez se surpreendam ao conhecer um outro lado seu —a poesia que escreveu, sobretudo, em idade mais avançada. “Encontrei muitos manuscritos com versos”, diz Bia. “Mas é uma poesia estranha, bem Rubem Fonseca, bem dura.”
A parte iconográfica é um mundo à parte. As imagens que vão parar na fotobiografia mostram o autor em situações como uma visita a Carmen Miranda, em Los Angeles, em 1954, ou entregando um envelope a Pelé —num ano em que Zé Rubem teve a ideia de presentear os jogadores da seleção brasileira com ações da Light.
E há pelo menos uma parte do arquivo que ainda é um mistério a ser esclarecido: os disquetes, que devem guardar os últimos anos de correspondências do autor, provavelmente por email. A filha já encomendou nos Estados Unidos um aparelho para ler esses hoje jurássicos dispositivos, mas ainda não o recebeu.
De todo, a extensão do arquivo do escritor não deve tirar a atenção de outro acervo valiosíssimo, o próprio depoimento de Bia, cheia de histórias para contar sobre o pai.
Por exemplo: você sabia que o recluso autor americano Thomas Pynchon teria vindo ao Brasil nos anos 1980 e saiu para jantar com Rubem Fonseca? A biblioteca do brasileiro tem até um livro com dedicatória do colega gringo.
E aquela história de que Rubem Fonseca só tinha pupilas literárias, jamais pupilos? Pura maldade, diz Bia, rindo. Também auxiliou vários escritores homens.
Cinco anos depois da morte do autor, é o relato de Bia que também o traz à vida. “Uma amiga minha falou: ‘Ah, mas seu pai não gostava de dar entrevista, não falava da vida dele, você vai mostrar tudo?’ Ué, ele deixou [o acervo]. Se ele quisesse, ele queimava. Ele deixou tudo para eu fazer o que quiser.”
Fonte ==> Folha SP