Salas de consumo de drogas na Alemanha reduzem mortes – 28/06/2025 – Cotidiano

A imagem mostra uma mesa com utensílios de cozinha. Há bandejas de metal com colheres e pratos empilhados. Também estão presentes algumas velas em copos pequenos. Ao fundo, é possível ver uma cadeira e parte de uma mesa.

Na porta de um prédio, dois homens se preparam para fumar crack quando são interrompidos por uma moradora que, empurrando um carrinho com o filho, os repreende. Ela lembra que já havia pedido para que não consumissem drogas no local. Eles concordam e a deixam passar.

A mesma cena, comum no centro de São Paulo, repete-se em Frankfurt, capital financeira da Alemanha. A cidade convive com o consumo de drogas nas ruas desde os anos 1980. Diante do agravamento, passou a oferecer salas de consumo supervisionado, que visam redução de danos, a partir de meados dos anos 1990, quando as drogas injetáveis eram predominantes.

Antes disso, usuários ocupavam parques e calçadas, e o número de mortes chegava a 150 por ano —hoje são cerca de 25. Na mesma época, estimava-se que 1.500 pessoas viviam nos arredores da estação ferroviária, então o maior ponto de uso de drogas a céu aberto do país.

Com as salas, usuários tiveram acesso a um ambiente limpo com seringas e ferramentas esterilizadas, o que ajudou a conter infecções como hepatite C —cuja taxa caiu de 70% para 10% dos usuários — e HIV, hoje presente em apenas 4% dos usuários, estima Gabi Becker, responsável pela gestão da Integrative Drogenhilfe (em português, Serviço Integrativo de Apoio a Usuários de Drogas), entidade que oferece apoio, serviços de redução de danos e possui cinco endereços em Frankfurt.

Atualmente, segundo a Euda (Agência da União Europeia sobre Drogas), a Alemanha tem 25 centros de consumo supervisionado, em 16 cidades. As primeiras salas no território germânico surgiram em Frankfurt e Hamburgo, em 1994. Na Europa, hoje, são cerca de cem.

“Nosso objetivo é salvar vidas”, diz Becker. Segundo ela, as medidas melhoraram a qualidade de vida dos usuários —chamados de clientes— e trouxeram benefícios para a cidade. Ainda assim, é comum ver pequenos grupos reunidos em torno das estações, com traficantes e usuários.

Nas salas germânicas, não é exigido que a pessoa aceite tratamento para abandonar o uso. “Aceitamos as pessoas como são e não queremos que vivam uma vida abstinente se não estiverem prontas para isso”, explica Becker. Em alguns centros, é possível pernoitar ou morar por um período —uma forma de assistentes sociais se aproximarem e entenderem melhor as necessidades de cada um.

A pandemia foi um desafio. Para evitar contaminação, as salas funcionaram com metade da capacidade. Até hoje, há consequências, afirma Andreas Geremia, supervisor de uma sala de consumo no centro da cidade. “Conquistá-los de volta não tem sido fácil. A relação mudou um pouco”, diz.

Apesar dos avanços, Frankfurt ainda enfrenta o desafio de ampliar a estrutura para o consumo de crack. As salas mantêm a configuração dos anos 1990, quando havia mais usuários de drogas injetáveis. Hoje, o crack é mais comum e para isso são oferecidos kits com cachimbos e filtros.

Na sala que Andreas gerencia, por exemplo, há quatro vagas para usuários de crack, e a demanda é alta. Por isso, cada usuário só pode permanecer por até 30 minutos. Já nas salas para drogas injetáveis, o tempo não é restrito e há quase o triplo de lugares. Um projeto prevê ampliar a capacidade para 16 vagas até 2027, mas ainda sem data de inauguração.

Becker explica que a maioria dos clientes é poliusuária, ou seja, usa mais de um tipo de droga. A cocaína, base do crack, é barata e de fácil acesso na Europa, o que impulsiona o consumo.

Segundo a Euda, o número de pessoas que iniciaram tratamento para cocaína cresceu 31% entre 2018 e 2023; no caso do crack, o aumento foi de 35%. Em 2023, salas de consumo assistido em dez cidades de oito países da União Europeia relataram o uso de crack isolado ou com heroína.

Em São Paulo, um projeto de lei do deputado estadual Eduardo Suplicy (PT) propõe criar salas de consumo supervisionado inspiradas no modelo europeu. Apresentado em março, o projeto foi criticado pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB), que acusou o deputado de fazer apologia ao uso de drogas. Suplicy rebateu dizendo que o combate às drogas “não comporta leituras simplistas”.

Na capital paulista, a polícia já descobriu salas clandestinas, como na Operação Carone, que em 2022 interditou imóveis perto da praça Júlio Prestes onde foram flagradas cenas de consumo coletivo.

O delegado Roberto Monteiro, idealizador da operação, descreve esses pontos como “antros de destruição da vida humana”. Para ele, o consumo assistido na Alemanha é diferente. “Lá, o poder público assiste o adicto para que consuma com segurança, mas não fornece drogas e há esforços para tratar o vício dos frequentadores.”

Na Alemanha, Becker, da Integrative Drogenhilfe, diz estar acostumada às críticas ao trabalho de redução de danos. Ela reforça que a organização não vende drogas e que as pessoas devem obtê-las em outro lugar. Nas salas, usuários podem consumi-las em ambiente “higiênico, silencioso e seguro”, sem intervenção policial.

Ela lembra que, nos anos 1990, a ideia foi bem aceita pela população em meio à epidemia de drogas. Hoje, em meio a uma onda conservadora, o cenário é outro e há receio de cortes no orçamento.

Ao todo, em Frankfurt, são 180 funcionários que atendem cerca de 5.000 pessoas ao ano —para manter tudo funcionando são cerca de 12 milhões de euros anuais, cerca de R$ 80 milhões.

Na imprensa internacional e em vídeos, a cidade costuma ser apelidada de “Crackfurt”, fusão de Frankfurt com crack, termo que Becker considera discriminatório.

Em alguns centros, os clientes podem trabalhar em atividades como lavanderia, cafeteria ou jardinagem. É o caso do português Antonio Martines, 57, que falou com a reportagem. Morador de um desses centros, pediu cinco minutos e voltou com flores nas mãos.

Há 15 anos, ele deixou Portugal em busca de oportunidades em Frankfurt, mas acabou se envolvendo com heroína. Conseguiu abandonar a droga injetável há seis anos e, desde então, faz tratamento com metadona, um opioide.

Uma recaída aconteceu depois que flagrou uma antiga companheira com outro homem — desde então, passou a usar crack. “Sei que é pouco”, diz, referindo-se ao motivo que o fez voltar ao vício. Antonio tem um filho, mas não mantém contato com ele.

Apesar das dificuldades, ainda sonha. “Meu sonho é ser feliz, mas sem drogas. Achava que isso traria felicidade. No começo, trouxeram, depois perdi tudo.”



Fonte ==> Folha SP

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