O teólogo André Daniel Reinke deu ao seu novo livro um título que fará todo sentido para qualquer um que tenha visto imagens da Marcha para Jesus deste ano: “Paixão por Israel – Judaização, Sionismo Cristão e Outras Ambiguidades Evangélicas” (ed. Thomas Nelson Brasil).
Bandeiras do Estado judeu dominaram o maior evento evangélico da América Latina. A erupção do conflito com o Irã, somada àquele contra o Hamas, deu novo fôlego ao que Reinke define como judaização do evangelicalismo brasileiro.
Amostras desse fenômeno circulam não é de hoje entre os crentes. Pode ser a Igreja Universal do Reino de Deus inaugurando uma réplica do Templo de Salomão, com o bispo Edir Macedo vestido com indumentária judaica (quipá e talit). Ou Peixão, traficante convertido, instalando uma Estrela de Davi no alto do que batizaria de Complexo de Israel, símbolo do seu domínio sobre um conjunto de favelas no Rio.
“Israel apresenta-se ao imaginário evangélico como ‘o relógio de Deus’ marcando o tique-taque do fim da história”, diz o autor. Populariza-se nas igrejas a interpretação literal de profecias bíblicas —o retorno de Jesus à Terra, para comandar o Juízo Final, seria contemporâneo à Israel renascida, ou seja, à nação que surge após o Holocausto.
O pano de fundo teológico é esse, “embora as consequências sejam políticas” e fortaleçam o que Reinke chama de “sionismo cristão”. “E o imaginário em torno de Israel dá lucro”, diz. Basta ver a quantidade de caravanas evangélicas para a região, como uma anunciada a partir de R$ 34,3 mil, que sairá rumo a Israel e Egito em outubro, com os pastores Silas Malafaia e Cláudio Duarte a bordo.
Como podemos resumir essa paixão de evangélicos por Israel?
Deriva da paixão do evangélico pela Bíblia. Nos textos bíblicos está descrito um povo que recebe a revelação divina, e esse é o povo de Israel. Hoje existe um país chamado Israel que tem seu “mito nacional” fundado no Israel bíblico, como uma espécie de “renascimento” da nação judaica após dois mil anos.
Qual o papel do Israel contemporâneo nesse imaginário?
Para esse evangélico apaixonado por Israel —não são todos, mas é uma boa parcela—, trata-se do cumprimento de profecias do Antigo Testamento. Algumas escatologias [que tratam daquilo que é apocalíptico] entendem o Israel contemporâneo como um “degrau” para a vinda do Reino de Deus. Nessa perspectiva, profecias sobre a posse da terra prometida, Armaggedom e uma procissão dos povos a Jerusalém para adorar a Deus são tomadas literalmente. Israel é a geografia da esperança do Reino de Deus.
O que é o sionismo cristão ao qual o sr. se refere?
Sionismo vem de “Sião”, termo usado pelo movimento nacionalista judaico para propor o retorno dos judeus à Palestina, ocupando o que foi a terra de Israel na Antiguidade. Sionismo cristão seria o apoio dos cristãos ao sionismo. O termo “cristão” significa que esse apoio acontece por razões teológicas, embora a prática e as consequências sejam políticas. Acontece, por exemplo, quando parlamentares pressionam a diplomacia a se posicionar a favor de Israel.
Quando começou o que o sr. chama de judaização das igrejas evangélicas brasileiras?
É a assimilação de práticas e símbolos judaicos por não-judeus. Esse fenômeno ocorreu algumas vezes ao longo da história cristã, mas ganhou maior proporção atualmente, especialmente no meio neopentecostal. Evangélicos buscam símbolos que consideram mais “puros” e “bíblicos”, próximos à origem da igreja cristã, que deriva do judaísmo do primeiro século. Como a menorá [candelabro de sete braços], o shofar [instrumento de sopro feito em geral do chifre de carneiro] e as festas da Torá —Páscoa, Pentecostes.
É um fenômeno global ou típico do Brasil?
Acontece em vários lugares do mundo. No caso brasileiro, talvez haja um interesse maior por causa do vácuo simbólico das igrejas derivadas do evangelicalismo, bastante iconoclasta no Brasil. Nossas igrejas são despidas de imagens e liturgias. E o judaísmo é pródigo nelas, além de seus símbolos aparecerem na Bíblia em versão primitiva. Claro que eles são ressignificados pelos evangélicos.
Há uma óbvia incompatibilidade teológica entre cristãos e judeus: Cristo como messias. Como isso se resolve?
Os evangélicos não são um grupo monolítico. Há diversas interpretações e, inclusive, posições opostas. No caso dos dispensacionalistas [corrente teológica na qual Deus mantém promessas e regras distintas para cada período da humanidade, o que se segue até a vinda do Reino Eterno], considera-se estar vivendo um estado intermediário, aguardando a conversão em massa dos judeus a Cristo no final dos tempos.
Já para outras linhas, especialmente ligadas à judaização, o judeu não precisa se converter a Cristo porque já está salvo pela Aliança Abraâmica. Esse pensamento facilita a identificação dos evangélicos com os judeus, uma vez que se entendem como defensores da mesma fé.
Como a comunidade judaica vê essa aproximação com seus símbolos de fé?
Não se pode falar de uma visão unânime. Judeus secularizados parecem não se importar com o uso de símbolos litúrgicos, enquanto judeus religiosos podem ficar desconfortáveis, até ofendidos. No caso da bandeira de Israel me parece haver maior resistência, uma vez que ela, símbolo nacional e laico, aparece em púlpitos evangélicos, na Marcha para Jesus e em manifestações políticas conservadoras. Esse uso, especialmente ligada a políticos, causa maior desconforto.
O sr. destaca também o aspecto econômico dessa relação.
O rio cultural e econômico que navegamos é o capitalismo. Tudo se torna produto, inclusive elementos ligados à fé. Há grande comércio de artigos judaicos em lojas evangélicas, assim como uma indústria de turismo para a Terra Santa, sem falar no que se movimenta em termos de literatura e mídias sociais quando o assunto é o final dos tempos. Sensacionalismo gera muitos likes. E o imaginário em torno de Israel dá lucro.
Raio-x | André Daniel Reinke, 53
Ijuí (RS), 1972 Formado em história pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e em desenho industrial pela Universidade Federal de Santa Maria, é mestre e doutor em teologia. Dá cursos de história do cristianismo em seminários e faculdades do país. É autor também de “Nós e a Bíblia: História, fé e cultura do judaísmo e do cristianismo e sua relação com a Bíblia Sagrada”.
Fonte ==> Folha SP