Três mulheres que lideram fomento à filantropia no Brasil – 23/05/2025 – Folha Social+

A imagem mostra uma mulher sorrindo, com cabelos longos e ondulados. Ela está vestindo uma blusa com um padrão geométrico em branco e roxo. O fundo da imagem é escuro, destacando seu sorriso e a blusa.

Associada historicamente à caridade, a filantropia vem sendo ressignificada mundialmente, caminhando para se tornar um conjunto de práticas que combatem problemas estruturais e promovem transformações duradouras.

No Brasil, essa discussão vem sendo liderada principalmente por mulheres —entre elas, Carola Matarazzo, do Movimento Bem Maior (MBM), Cristiane Sultani, do Instituto Beja, e Geyze Diniz, do Pacto Contra a Fome.

Integrantes de famílias com grandes fortunas, elas ingressaram no campo social por caminhos diversos, doaram tempo e dinheiro para causas como educação, artes e esporte, mas acabaram vendo a necessidade de se voltar para o incentivo ao próprio campo da filantropia e promover uma cultura de doação no Brasil.

Para isso, buscaram consultorias e formações que pudessem lhes fornecer dados e caminhos para atuar com uma filantropia mais estratégica, voltada para soluções estruturantes.

Mulheres sempre estiveram envolvidas com filantropia, mas muitas vezes como coadjuvantes, sem o poder de decisão sobre como os recursos seriam direcionados. Mas pesquisas feitas por organizações como o Women’s Philanthropy Institute, dos EUA, mostram que isso está mudando.

“O terceiro setor tem um DNA feminino desde o começo, com as Santas Casas de Misericórdia. Mas existe um descompasso de gênero na filantropia, e a gente ainda não vê ainda tantas mulheres filantropas”, aponta Carola Matarazzo, 58, diretora-executiva do Movimento Bem Maior (MBM), apoiador da causa do ano “Doar é Transformar”, da Folha. “Isso está mudando nas novas gerações. Já há muitas mulheres à frente dos conselhos de famílias mais abastadas.”

Carola começou sua trajetória social há 25 anos na Liga Solidária, organização centenária referência que ela ajudou a modernizar.

O MBM, que ela lidera desde 2019, tem como um dos pilares o fomento à cultura de doação no Brasil e acaba de receber o Philanthropy Award 2025, prêmio da Brazilian-American Chamber of Commerce, em Nova York.

A organização também apoia uma coalizão que busca um arcabouço fiscal mais favorável às doações no país. “É o recurso filantrópico alimentando a própria mudança dentro do ecossistema”, diz Carola.

Ela defende uma filantropia baseada em confiança (do inglês, “trust-based philanthropy”), com menos controle de quem doa sobre o trabalho de quem está na ponta, e a valorização de soluções desenvolvidas por quem vive nos territórios.

“A filantropia, se não for bem olhada, pode ser uma faca de dois gumes, porque quem financia tem o poder. Temos que descentralizar poder e olhar para o investimento social como um recurso para alavancar soluções comunitárias, conjuntas e cocriadas”, diz.

Da cesta básica às políticas públicas

Para Geyze Diniz, 53, a prática de uma filantropia estratégica está atrelada a uma causa: a do combate à fome.

Presidente do conselho da coalizão Pacto Contra a Fome, ela passou por diferentes fases do processo de doação, das ações emergenciais na pandemia até uma atuação que incide sobre políticas públicas.

Viúva do empresário Abílio Diniz, Geyze atua com filantropia há 15 anos, quando a família deixou o Grupo Pão de Açúcar e criou um instituto próprio, o Península, que apoia projetos de formação de educação e esporte.

A economista também se engajou no campo das artes, integrando os conselhos da Bienal de São Paulo e do Masp, e em projetos socioambientais no litoral de São Paulo.

“Fui abrindo e fechando ciclos. É um trabalho que vai além de uma causa, que passa por querer me mover, ver onde minha capacidade de gestão, de influência ou de dinheiro pode ajudar.”

Até que veio a pandemia e a explosão da insegurança alimentar no Brasil. Ela, então, se uniu a empreendedores sociais para criar o movimento União São Paulo, que entregou mais de 900 mil cestas básicas em 2020 e, em 2021, quando as doações rarearam, conseguiu arrecadar R$ 240 milhões em quatro meses.

Enquanto isso, Geyze foi aprendendo sobre a fome e “ganhando contexto”. “Nem de longe eu sei ainda o que é a realidade das comunidade, mas aquilo me deu mais substância, mais base.”

A ação emergencial despertou sua vontade de ir fundo no problema. “Cesta básica não resolve. Eu queria entender as causas da fome, do desperdício de alimentos.”

A economista, então, encomendou um diagnóstico para uma consultoria e conversou com centenas de pessoas dos setores público, privado, da academia e de ONGs.

Percebeu, então, que a solução deveria vir de um coletivo que juntasse atores que entendem de diversas áreas —-e assim nasceu o Pacto, cuja meta é zerar a fome no Brasil até 2030 e a insegurança alimentar até 2040.

“Vimos que não era o caso de criar uma nova instituição, começar do zero ou reinventar a roda. Isso custa, leva tempo. A gente quis entender o que já existe e trabalhar junto”, afirma.

Ela batalha por mais recursos para a causa da fome. “70% do capital filantrópico vai para a educação. Os outros 30% vão para meio ambiente, saúde, cultura, esporte. Fome é traço. Por que as pessoas não veem essa pauta como importante?”, questiona.

Um dos desafios é engajar o setor privado, que ela considera desconectado do problema. “Tem muita gente com carteira assinada com algum grau de insegurança alimentar. A gente pede que as empresas olhem para sua própria base de funcionários para enxergar esse problema e dar uma renda digna para eles, que olhem para o desperdício dentro de seus negócios e se sintam responsáveis também.”

Ainda na linha de filantropia estratégica, o Pacto tem apoiado estudos para gerar evidências que apoiem políticas públicas.

Geyze acredita que o terceiro setor deveria caminhar para essa ação coordenada. “Meu sonho é que a gente consiga ter uma filantropia mais articulada, para ganhar eficiência e potencializar o que já está sendo feito. Eu até desincentivo quem fala: ‘Quero abrir um instituto’. Gente, vamos primeiro fazer um mapeamento do que existe e agir de uma forma sistêmica? Ainda falta coordenação”, afirma.

‘Filantropia oxigenada’

Advogada com uma carreira de 23 anos no mercado financeiro, Cristiane Sultani, 51, tem uma trajetória recente no campo da filantropia. Em 2021, após a morte do marido, o empresário Pedro Alberto Fischer, ela fundou o Instituto Beja, para apoiar projetos de geração de renda, combate à violência doméstica e educação infantil.

Para se inserir melhor no mundo dos investimentos de impacto, Cristiane fez workshops com consultores internacionais, buscando entender como usar as doações com eficiência, escolher bons projetos e avaliar os resultados.

“Voltei para o Brasil pronta para fazer uma filantropia do jeito que eu tinha aprendido: com colaboração, visão sistêmica, interface com governo”, conta. “Mas, depois de um ano e meio, eu não estava conseguindo fazer nada disso.”

epois de contratar uma consultoria, a advogada percebeu que o Beja tinha que mudar de foco e voltar-se para o ecossistema da filantropia. Recebeu questionamentos por querer mudar de missão em um ano e meio de instituto. “Respondi que iria mudar porque o que importa é o uso eficiente do dinheiro”, diz.

O Beja investe no que batizou de uma “filantropia oxigenada” —que Cristiane define com “tomar mais risco, utilizar modelos inovadores, com novos parceiros e o uso do policapital”. “O filantropo acaba doando o recurso, mas fica distante do dia a dia da instituição. Só que a gente tem muito mais do que dinheiro para dar: é o contato, o network, a capacidade intelectual, o olhar de risco. Estar próximo do projeto é muito importante.”

Ela defende o investimento em inovação e em tecnologias para escalar soluções. “O governo não pode arriscar dinheiro de imposto, as empresas se obrigam a ter lucro. É a filantropia familiar que pode mudar o jogo, porque não estamos atrelados a nenhuma obrigação e podemos usar o capital para experimentação”, afirma.

O Instituto Beja promove pesquisas e um evento sobre o futuro da filantropia. Recentemente, fez uma parceria com o Centro para Mudanças Exponenciais, hub indiano que ajuda a escalar projetos sociais..

Entre os desafios para desenvolver a cultura de doação, Cristiane cita a necessidade de um marco legal e tributário mais favorável e de produção de dados.

“Fora isso, tem o desafio da cultura mesmo. Nos EUA, as crianças já nascem nesse ambiente. Mas no planejamento financeiro do brasileiro, não consta uma linha fixa de doação. Ninguém pensa nisso”, diz.

Para Cristiane, donos de grandes fortunas “deveriam fazer a transição de carteira de investimento para mais impacto”. “O brasileiro está acostumado com CDI alto, e fazer a migração desses investimentos é uma questão comportamental que exige muito esforço.”

Ela acredita que as mulheres terão um protagonismo cada vez maior nesse campo. “Com a transição de dinheiro prevista para a próxima geração, fica claro o potencial de equilíbrio entre capital feminino e masculino”, diz.

Estudos mostram que mulheres têm uma tendência maior do que os homens de se sentir em conflito em relação à sua riqueza, doam mais em relação ao total de seus ativos, distribuem suas doações entre um número maior de iniciativas e se comunicam melhor com as organizações que apoiam.

Elas também tendem a participar mais de doações colaborativas e a envolver múltiplas gerações da família na filantropia. Isso vale tanto para as solteiras —que têm maior probabilidade de doar do que homens solteiros— quanto para as casadas, que influenciam seus cônjuges a se tornarem doadores.

“As mulheres são fundamentais para destravar o capital filantrópico, não apenas porque estão começando a exercer mais influência sobre a riqueza familiar e a tomada de decisões financeiras, mas também porque estão muito mais envolvidas em suas comunidades, têm maior inclinação para retribuir do que os homens e são mais propensas a alinhar seu capital com seus valores”, diz um artigo das consultoras americanas Heather McLeod Grant e Jessica Robinson Love, publicado na revista Stanford Social Innovation Review.

Carola Matarazzo cita um insight que ouviu em um fórum internacional e que foi, para ela, marcante. “Os homens querem o fim da guerra. As mulheres querem construir a paz. O resultado é o mesmo, mas os caminhos podem ser um pouco diferentes”, afirma. “Na filantropia, a gente tem esse mesmo olhar: para as mulheres, o processo é tão importante quanto os resultados.”

Esta reportagem foi produzida para a Causa do Ano: Doar É Transformar, que conta com apoio do Movimento Bem Maior.



Fonte ==> Folha SP

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