Uma história real de doação de rim em vida – 07/05/2025 – Morte Sem Tabu

Uma história real de doação de rim em vida - 07/05/2025 - Morte Sem Tabu

A descoberta

Quando tinha três anos, uma condição renal criou minhas primeiras memórias de dor física: eu chorava muito e me jogava no chão do quarto dos meus pais, enquanto, dentro de mim, sangue e urina se misturavam. Era um quadro grave, mas que foi controlado com o uso de antibióticos por seis meses. “Se não tivesse funcionado, você poderia precisar de hemodiálise”, ouvia na infância. O assunto ficou no passado, até eu conhecer a história do multiartista Vinicius Calderoni.

Vinicius tinha 33 anos quando descobriu uma insuficiência renal crônica, condição médica grave, em que há a perda da função renal de forma lenta, progressiva e irreversível. Aos dois anos, um episódio de hematúria (presença de sangue na urina) houvera alertado os pais. Mas, após algumas consultas e exames, apesar da descoberta de uma situação genética, não houve diagnóstico que preocupasse.

Durante 31 anos, Vinicius viveu uma vida intensa, com plena saúde. Confrontado com a realidade de que poderia não estar mais tão saudável assim, ele acolheu a opinião que lhe pareceu mais conveniente: “não se preocupe, você tem rim pra muito tempo”. E um acompanhamento clínico superficial lhe pareceu suficiente.

Até que chegou a pandemia e, com o mundo fechado, ele ficou um tempo sem fazer exames. Por outro lado, passou a se perguntar se era uma pessoa com comorbidade, palavra que se tornou muito popular nos primeiros anos da Covid-19. Quando um tio com a mesma condição genética que Vinicius morreu em razão de complicações da Covid, em 2021, ele foi invadido pela angústia de se sentir uma pessoa em especial risco ao coronavírus.

Depois de realizar novos exames, Vinicius recebeu a notícia de que um transplante renal provavelmente seria necessário em algum momento. E aquilo lhe deu uma sensação de morte: “não houve sentimento de esperança, de conseguir solucionar um problema para voltar a ter uma vida normal, com uma expectativa de vida boa; houve só a finitude pairando sobre a minha cabeça”.

A ideia de um transplante bem-sucedido lhe parecia irreal demais e Vinicius sentia que os vários médicos a que recorria não o viam como uma pessoa, mas como a sua doença. O que para eles era somente um rim com defeito, para Vinicius era uma vida interrompida. Um artista está sempre projetando o futuro, a peça do ano que vem, a turnê do próximo disco, um novo roteiro. E ele se perguntava se ainda podia sonhar.

O diagnóstico redentor

Depois do período que Vinicius chama de “descida ao inferno”, o encontro com médicos que o viam para além da sua doença o salvou. Nem sempre um médico pode salvar alguém de um problema que acomete um órgão, o sangue, o corpo. Mas a forma como trata seu paciente e como se comunica com ele pode aliviar sua angústia e ajudar a salvá-lo do sofrimento psíquico que qualquer questão grave de saúde traz.

“Eu acho muito provável que você tenha Síndrome de Alport. Já te disseram isso, né?”. “Não, ninguém me disse isso”. Em um dia de janeiro de 2022, a confirmação do diagnóstico representou uma grande redenção para o artista. Ele não era mais apenas o rim com indicação de transplante: era uma pessoa com algo que agora tinha nome. E isso lhe trouxe paz.

Naquele dia, Vinicius encontrou Thiago Amaral, ator da Companhia Hiato. Era um encontro esperado, bonito, uma retomada para o teatro após dois anos de pandemia. O companheiro dos palcos foi uma das primeiras pessoas a saber do diagnóstico do amigo.

O encontro

Os dois enfrentavam o medo da morte ao mesmo tempo. Vinicius pela sua doença, e Thiago pela leucemia do marido, Sebastião Braga, que tinha feito um transplante. Não havia sido suficiente.

“Os médicos já haviam dito que ele precisaria de um segundo transplante, mas que não aguentaria. Nossa única chance era um tratamento experimental, nos Estados Unidos”.

Quando Vinicius contou para Thiago sobre o diagnóstico, o amigo não conseguiu dar a atenção que gostaria ou reconhecer a gravidade do caso, absorto no próprio sofrimento. “Eu tive até que pedir desculpas depois; quando ele contou, eu só disse que ia passar, que ia dar certo”.

Apenas no final de 2023, eles falariam novamente sobre o assunto. E, ao ouvir que Vinicius precisaria entrar na lista de transplantes por um novo rim, Thiago se mostrou disposto a fazer mesmo dar certo: “eu posso me candidatar para ser seu doador”. Xaxá, uma grande amiga de ambos, participava da conversa e completou: “eu também posso”. Os dois candidatos sabiam ter o tipo sanguíneo O negativo (doador universal).

Vinicius encarou a oferta como um carinho, como a frase que alguém diz para nos confortar. Ele ainda não imaginava quão concreta ela era.

Da ideia de morte à ideia de vida

Apesar de tudo, aquele ano de 2023 tinha sido de muita vida para Vinicius. A pulsão de morte houvera ficado para trás. As consultas com os novos médicos, a existência de um diagnóstico e o retorno ao teatro fizeram com que ele quisesse viver de forma radical. A incerteza sobre o transplante passara a servir como impulso de realização, de vida no agora, já que o futuro era muito imprevisível.

“Com isso eu fui conseguindo me reestruturar e até mesmo voltar a sonhar”.

A necessidade do transplante continuava na ordem do dia e Vinicius sabia que sua melhor chance era com doadores vivos. “Mas eu tinha absoluta certeza de que era algo que eu não poderia pedir para ninguém. Tinha que ser espontâneo, porque é um gesto maior do que a vida, é um gesto que dá a vida. E isso não pode ser pedido”.

Os índices no sangue iam ficando cada vez mais alterados, mas Vinicius não tinha sintomas incapacitantes. 2024 também acabou sendo um dos grandes anos da sua vida profissional: dois livros, duas peças grandes (O que só sabemos juntos e Nossa História com Chico Buarque) e um novo disco com a sua banda 5 a Seco. Isso o ajudou a não se sentir tão angustiado.

Só que, no segundo semestre, a função renal chegou ao estágio que permite a entrada na lista de espera para transplante renal. A preocupação era inevitável. Thiago, Xaxá e algumas outras pessoas haviam manifestado disponibilidade para uma doação. Mas como abordá-las sem ser intrusivo, sem ferir a regra que Vinicius havia criado de não fazer o pedido impossível a ninguém?

Tião

Thiago Amaral tinha vivido a aflição de buscar doadores compatíveis com o marido Sebastião. “É um momento desesperador. No caso do Tião, as medulas compatíveis eram de fora do país e nós estávamos na pandemia. Levaria muito tempo para chegar, então o transplante acabou sendo feito com a mãe dele, que era 50% compatível. Eu não queria ver um amigo passando por isso, a mãe do Vinicius passando pelo que a mãe do Tião havia passado”.

Sebastião Braga morreu no dia 13 de outubro de 2022. Thiago sabe que o luto vivenciado pela morte do companheiro é um componente essencial na forma como ele vive a sua vida; foi também esse luto que impulsionou a sua decisão de oferecer um rim para Vinicius.

A segunda parte deste texto está publicada em





Fonte ==> Folha SP

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