A política de cotas mudou a composição do ensino superior nos últimos 20 anos, em termos de classe, cor e raça dos estudantes. Hoje alunos das classes C, D e E são mais da metade dos matriculados, com maior inclusão de estudantes pretos, pardos e indígenas.
Um efeito colateral dessa recomposição foi um abandono simbólico das universidades públicas, segundo Luiz Augusto Campos, coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa, o Gemaa, e professor de sociologia e ciência política da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
“Quando a universidade é atacada, e ela vem sendo atacada de muitas formas nas últimas décadas, não encontra mais defensores nas classes médias e altas. E também não encontra nas classes populares, porque a universidade pública no Brasil ainda é muito restrita”, afirma.
Isso porque, embora as ações afirmativas tenham reduzido as desigualdades na entrada dos cursos, isso não significa que a maioria da população brasileira tenha ingressado no ensino superior público. “Nesse sentido, a universidade pública no Brasil está à deriva, sem defesa em nenhuma das classes brasileiras.”
Campos é organizador do livro “O Impacto das Cotas: Duas Décadas de Ação Afirmativa no Ensino Superior Brasileiro” ao lado da professora do Departamento de Sociologia da USP (Universidade de São Paulo) Márcia Lima. A obra é fruto da colaboração entre oito centros de pesquisa espalhados pelo Brasil e reúne mais de 30 textos assinados por cerca de 40 pesquisadores.
Para o pesquisador, a inclusão de grupos minorizados nas universidades públicas gerou uma espécie de desprestígio das federais, que passam a ser trocadas por universidades do exterior, quando possível. “Esse é um problema político que a gente precisa enfrentar. No passado, as universidades públicas eram vistas como propriedade das elites e das classes médias brancas, porque elas dominavam essas instituições.”
A adoção das cotas e a redução dos investimentos no ensino superior público —um novo decreto de Lula limitou a 61% os gastos de universidades federais pelo segundo ano consecutivo— geram duas consequências não intencionais, segundo o pesquisador. A primeira, simbólica, é que as elites não veem mais esse espaço como delas. O segundo é que elas passam a enfrentar dificuldades para passar no vestibular, agora mais concorrido.
“Isso faz com que alguns grupos passem a buscar universidades privadas de alto prestígio ou estrangeiras. Esse, no entanto, não é um movimento massivo, porque a parte da população que tem condições de financiar essas universidades privadas é muito pequena. Uma universidade como Harvard custa milhares de dólares por ano.”
Campos diz que as cotas também reposicionaram o debate sobre raça no Brasil e nega que elas tenham tornado as universidades parte da linha de produção de uma elite identitária. Para ele, elas refletem os conflitos que existem na sociedade.
“Eu não acredito que a maior parte da população brasileira olhe para a universidade e diga: ‘Nossa, que espaço identitarista’. Esse incômodo me parece muito restrito a um tipo de elite de centro-direita ou de centro-esquerda que superestima o papel desse identitarismo dentro da universidade”, diz.
O pesquisador diz que outro efeito indireto foi uma espécie de recomposição das elites e da própria função do ensino superior público no Brasil, que tira das classes mais baixas indivíduos historicamente mantidos nelas.
Por isso, Campos defende a criação de cotas para pessoas trans anunciada pela Unicamp em abril, já que, diz ele, a desigualdade de classe muitas vezes perpassa as dificuldades que recaem sobre esse grupo. Mas ele ressalta que “nem todas as cotas funcionam do mesmo jeito que as criadas para pretos, pardos e indígenas”.
De acordo com Campos, as ações afirmativas contribuíram para o aumento da presença de grupos indígenas no ensino superior, não necessariamente via Lei de Cotas. “Porque a lei trata como um grupo só pretos, pardos, indígenas e, mais recentemente, quilombolas. Dentro desse grupo, você tem desigualdades enormes.”
Estudantes pretos e pardos têm acesso à educação urbana por meio da escola pública, enquanto um indígena aldeado teria menos condições de competir por uma vaga, argumenta. Por outro lado, as cotas trouxeram outras ações afirmativas que beneficiaram esses estudantes, como convênios com a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), políticas de bolsas e cursinhos preparatórios.
Estudos apresentados no livro mostram que os cursos mais concorridos e prestigiados foram os que mais tiveram mudanças em sua composição. E enquanto as notas de corte para candidatos às cotas são cerca de 5% a 10% menores que as notas da ampla concorrência, essa desigualdade tende a desaparecer ao longo do curso.
O argumento de que cotistas são mais propensos à evasão escolar, usado por pessoas contrárias à política, é o mais fácil de descartar, segundo Campos. “Os dados mostram que a evasão é praticamente idêntica entre pretos, pardos e indígenas, de um lado, e brancos e amarelos, ou de livre concorrência, do outro lado.”
As pesquisas mostram que a evasão tende a ser mais impactada por razões de gênero. Homens evadem mais do que mulheres, por exemplo, e homens negros, mais do que todos os outros grupos. “Mas a diferença de homens negros para homens brancos é pequena, se a gente tem em vista todos os processos de opressão e desfavorecimento a que homens negros estão sujeitos.”
Fonte ==> Folha SP