A ideia de que existe uma “receita de bolo” para tirar nota mil na redação do Enem virou produto: vídeos, PDFs, cursos-relâmpago e grupos pagos prometem introduções infalíveis, repertórios coringa e conclusões de efeito. Funcionou durante anos, mas o atalho travou.
Em 2024, o Inep (órgão responsável pela prova) apertou o cerco a textos engessados. A banca passou a punir aberturas copiadas de outras edições, repertórios genéricos e palavrório rebuscado fora de contexto. O reflexo veio nos números: 60 redações nota mil em 2023, apenas 12 na edição seguinte.
Folha Estudantes
Um guia semanal em 6 edições para quem precisa planejar os estudos até o Enem.
“Existe um comércio organizado de modelos prontos. Não funciona mais”, alerta Ricardo Assahi, professor da plataforma Corrija-me, conhecido como Japa da Redação. Ele conta que o rigor veio “sem aviso prévio”, surpreendendo candidatos e professores.
Para quem ainda aposta em “frases mágicas”, a frustração cresce. “No primeiro ano do ensino médio usei modelo pronto e só me atrapalhei”, lembra a vestibulanda Júlia Mekaru, 18. Quando abandonou a fórmula e usou exemplos do cotidiano, a nota subiu.
Cair na armadilha também compromete a formação acadêmica. “Se você tem dignidade, não paga para alguém escrever por você”, diz Maria Aparecida Custódio, professora de redação no Objetivo desde 1989. Na primeira aula de cada turma ela “demole” estruturas prontas: “Jamais trabalhamos com esqueleto de redação.”
Para o Japa da Redação, a pressa em copiar leva o aluno a perder tempo que deveria ser usado em leitura, treino e revisão.
Com base em entrevistas com esses especialistas, a Folha preparou um guia para quem quer fugir das fórmulas, construir repertório e treinar de forma eficaz até a prova de novembro.
USE ESTRUTURA, NÃO RECEITA PRONTA
Organizar o texto com clareza é essencial, mas isso não significa seguir uma receita. A estratégia mais eficiente envolve definir uma tese, selecionar argumentos consistentes e encadear ideias com coesão. Cada tema exige decisões próprias, que só se aprendem com prática real e leitura crítica.
O erro está em copiar modelos prontos, com parágrafos retirados de apostilas ou vídeos. O corretor percebe quando o aluno apenas preenche lacunas com frases genéricas ou palavras difíceis que não domina.
Treinar a estrutura ajuda, desde que ela sirva ao raciocínio, e não o contrário.
FAÇA PROJETO ANTES DE COMEÇAR A ESCREVER
Antes de colocar a caneta no papel, desenhe o projeto de texto. Segundo o professor Lima, esse esquema ajuda a evitar furos no desenvolvimento e garante coesão.
O roteiro mínimo inclui:
- uma tese clara
- dois parágrafos de desenvolvimento (com argumentos e repertórios específicos)
- proposta de intervenção (com os cinco elementos exigidos pelo Enem: ação, agente, meio, finalidade e detalhamento)
Ter repertório não significa acumular citações de filósofos. Para funcionar, a referência precisa estar integrada ao raciocínio, conectada ao tema com clareza.
Professores recomendam investir em repertórios conceituais. Em vez de mencionar um nome famoso, vale mais apresentar uma ideia e explicar como ela se aplica ao problema em debate. Leituras variadas —de livros, reportagens, filmes ou séries— rendem bons exemplos, desde que o aluno saiba interpretá-los e usá-los com precisão.
Não é possível sustentar um bom texto sem repertório. Para Custódio, a única fórmula que funciona é ler. Comece por textos curtos: crônicas de Luis Fernando Verissimo, contos de Clarice Lispector, ensaios jornalísticos, perfis, resenhas. Com o tempo, avance para obras como Admirável Mundo Novo, O Cortiço e reportagens mais densas.
Vale manter um caderno com autores, conceitos, eventos históricos, dados e obras que você consiga relacionar a temas como cidadania, saúde pública, cultura digital, violência ou desigualdade.
EXERCITE A ESCRITA TODA SEMANA
Uma boa redação se constrói com treino, não com fórmulas. O ideal, segundo o professor Assahi, é escrever um texto por semana desde o início do ano. Isso permite testar temas diversos, explorar abordagens diferentes e ampliar o repertório.
O treino deve incluir leitura dos textos de apoio, produção completa da redação, correção com alguém que conheça os critérios do Enem e revisão feita pelo próprio aluno, comparando sua versão com modelos bem avaliados.
Ao manter esse ritmo, o estudante chega à prova com mais de 30 textos escritos —e muito mais segurança que quem decorou meia dúzia de frases de efeito.
Copiar textos prontos, quando feito com intenção, também serve como treino técnico. Custódio propõe um exercício simples: copiar à mão dois editoriais por semana.
A prática ajuda a internalizar pontuação, vocabulário e organização do texto dissertativo-argumentativo. “Copiei vírgula por vírgula para aprender”, diz Custódio.
É importante lembrar que isso é exercício de bastidor, não recurso para usar na redação do Enem. A proposta é desenvolver ritmo, clareza e precisão.
EVITE FRASES DE EFEITO E CITAÇÕES ‘MÁGICAS’
As bancas estão saturadas de frases coringa. Expressões como “o filósofo Platão já dizia…”, “segundo a Constituição de 1988…” ou “como escreveu Thomas More, em Utopia…” foram tão usadas que hoje viram sinal de fórmula pronta.
Evite também termos genéricos e pouco naturais, como “empecilho”, “problemática” ou “óbice” —palavras difíceis que o aluno muitas vezes não domina.
Custódio chama esse tipo de uso de “trapaça”: “Tira do estudante a possibilidade de pensar com a própria cabeça.”
TIRE O PESO DA NOTA MIL
A obsessão pela nota máxima é uma armadilha comum. Em vez de ajudar, ela aumenta a ansiedade, faz o aluno buscar atalhos e reforça a ideia de que existe um modelo ideal.
Mais importante do que atingir a nota mil é desenvolver um texto coerente, coeso, bem argumentado e alinhado às cinco competências do Enem.
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Fonte ==> Folha SP