Enem: Fórmulas prontas viram armadilha na redação – 01/07/2025 – Educação

Uma estudante está em uma sala de aula, em frente a um quadro verde. Ela tem cabelo curto e usa óculos. A estudante está vestindo uma blusa de manga longa vermelha e calças claras. Ela segura um caderno e tem uma mochila nas costas. O ambiente parece ser uma sala de aula típica, com mesas e cadeiras visíveis ao fundo.

A estudante Júlia Mekaru, 18, quer cursar medicina e está em sua segunda tentativa no vestibular. No primeiro ano do ensino médio, seguiu a cartilha das chamadas “fórmulas nota mil” —estruturas decoradas vendidas em apostilas e vídeos— e se frustrou. “No começo, eu tentei usar modelo pronto. Não dá certo, é uma grande falácia”, diz.

No cursinho Objetivo, onde Júlia estuda, a professora Maria Aparecida Custódio transforma a primeira aula do ano em um alerta contra fórmulas. “Jamais trabalhamos com esqueleto de redação. Já chego demolindo qualquer frase pronta ou ‘nota mil garantida’.” Para ela, copiar estruturas tira do estudante a chance de construir um texto com autoria e empobrece o processo de escrita.

Custódio também critica o culto à nota máxima. “Vamos parar com a história de nota mil como Santo Graal. [Nota] 870 te põe em qualquer carreira.”

Modelos —ou fórmulas prontas de redação— são estruturas que prometem ao estudante um atalho para a nota máxima. Circulam em vídeos, apostilas, cursos pagos e até como produto comercializado nas redes sociais. Muitas vezes vêm com trechos prontos de introdução, repertórios genéricos e frases que caberiam em qualquer tema. Mas a prática, cada vez mais, tem se mostrado arriscada.

Professores e ex-corretores ouvidos pela Folha afirmam que, em 2024, a banca do Enem passou a marcar mais de perto esses textos engessados. Entraram na mira estruturas repetidas, repertórios forçados, superficialidade, uso excessivo de palavras genéricas como “problemática” ou “empecilho” e termos rebuscados que o aluno nem sempre demonstra dominar.

Para os especialistas, esse foi o principal motivo da queda nas notas máximas. Em 2023, 60 candidatos tiraram mil na redação. Em 2024, o número caiu para 12.

Segundo Carlos Lima, professor de redação e ex-corretor do Enem por 16 edições, a mudança é resultado de um processo gradual. “No começo dos anos 2000, os temas eram mais abertos, permitiam abordagens diversas e originais. Hoje, são muito delimitados, e isso limita também o repertório dos alunos.”

A redação do Enem é avaliada em cinco critérios, cada um valendo até 200 pontos: o domínio do português, compreensão do tema e aplicação de conceitos, articulação de informações, coesão e proposta de intervenção.

Lima diz que a crescente padronização das redações foi incentivada pelo próprio sistema. Professores que também atuam como corretores passaram a ensinar com base nas expectativas da banca.

No diagnóstico de Custódio, esse comportamento padronizado por parte dos candidatos tem origem em um cenário mais amplo de apatia estudantil e empobrecimento do senso crítico. “A curiosidade, o desejo de aprender e de se envolver têm dado lugar à mediocridade, à falta de motivação e a um pragmatismo do tipo ‘passar tá bom’. É tudo mercantilizado

Na redação do Enem de 2024, que teve como tema Desafios para a valorização da herança africana no Brasil“, Júlia decidiu confiar no que sabia. Deixou de lado as citações filosóficas genéricas e recorreu a exemplos do cotidiano, como o preconceito contra o funk. A nota veio melhor do que esperava. “Eu citei repertórios muito simples e, mesmo assim, consegui ir bem.”

“O rigor começou na edição de 2024, pegando alunos e professores de surpresa”, afirma Ricardo Assahi, professor da plataforma Corrija-me, conhecido como Japa da Redação. Para ele, embora a cartilha do participante traga menções à importância de um texto autoral, a comunicação do Inep, órgão responsável pelo exame, foi pouco clara. “Ficou tudo muito interpretativo. Isso prejudica a preparação dos professores e frustra os candidatos.”

A Folha entrou em contato com o Inep por email e telefone, mas não recebeu resposta às questões levantadas até a publicação desta reportagem.

A Cartilha do Participante é o documento oficial publicado pelo órgão com orientações detalhadas sobre a redação do Enem. Ela explica os critérios de correção, as cinco competências avaliadas e serve como guia para os participantes na elaboração dos textos. Na edição de 2024, o instituto reforçou a preferência por conteúdos autorais e alertou para que o candidato não copie os textos motivadores nem trechos do caderno de questões.

Para Lima até recentemente um “modelo razoável” ainda rendia entre 800 e 920 pontos. Isso mudou. A banca passou a refinar o olhar e cortar fórmulas muito repetidas. Segundo o Assahi, as fórmulas só funcionam hoje em temas muito específicos. “Existe um comércio organizado de modelos prontos. Não funciona mais.”

ALÉM DAS FÓRMULAS

Das 12 notas mil de 2024, três citaram o mesmo livro (“Torto Arado“, de Itamar Vieira Junior). Para Lima, modelos “fechados”, com parágrafos engessados, são facilmente detectados. Já modelos “abertos”, que sugerem caminhos argumentativos, podem ajudar iniciantes, “mas exigem preparo e ideias próprias”.

Ele recomenda um esquema básico: tese clara, dois argumentos bem articulados, repertório pertinente a cada parágrafo e, no Enem, proposta de intervenção com cinco elementos (ação, agente, meio, finalidade e detalhamento).

Fórmulas não se confundem com estratégias legítimas de escrita. Custódio diz que a “fórmula real” é reacender o gosto pela leitura. Orienta os alunos a “abrir escaninhos” do repertório passivo —história, filosofia, cinema— e conectar essas referências ao tema. “A originalidade nasce da combinação das ideias.”

Júlia segue o conselho. Leva para a redação conceitos de sociologia, geografia e história e escreve toda semana. “Ir bem requer prática, leitura de textos nota alta e, sobretudo, alguém que corrija os seus.”

Assahi concorda. Tudo vale, desde que bem contextualizado, diz. “Estratégia de organização funciona; modelo pronto é copiar e colar. Essa distinção precisa ficar clara.” Para ele, existem quatro pilares para evoluir na redação: conhecimento teórico, aplicação prática, correção profissional e revisão pelo próprio aluno.

Custódio lamenta a perda de terreno da leitura para a velocidade das telas. Mas não se rende. “O aluno não odeia ler: ele está acomodado —e às vezes nós, professores, também. Não dá para jogar Dostoiévski em quem nunca leu crônica. É preciso começar com algo curto e cativante.” Ela conclui: “Não existe estudante que, bem estimulado, continue odiando a leitura. Falta oferecer o livro certo, na hora certa.”

A Folha oferece assinatura gratuita para estudantes que se inscreverem no Enem; clique aqui para saber mais.



Fonte ==> Folha SP

Leia Também

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *