[RESUMO] A pianista chinesa Yuja Wang, que toca em São Paulo na próxima semana, tornou-se um fenômeno de mídia e encarna um período de mudanças na música clássica. Suas interpretações são marcadas pela visualidade de seus vestidos de alta-costura e por uma performance atlética, típica do projeto expansionista da China, que revolucionam a música clássica e ditam novas formas de consumo.
Todo mundo que gosta de ir a concertos conhece Yuja Wang. No século 21, poucos instrumentistas mereceram tantas reportagens, fotografias e tantos vídeos como a pianista chinesa, de 38 anos, 1,58 metro de altura, dedos compridos e cabelos curtos, arrepiados nas pontas. Fenômeno de mídia, Wang simboliza a revolução chinesa na música clássica e encarna um tempo de mudanças no consumo, na produção e na interpretação dos solistas, contaminados pela cultura de massa.
Disputada pelo mercado de luxo, Wang é uma fashionista que afrontou o decoro das salas de concerto, usando vestidos curtíssimos e decotados. Expôs, assim, o machismo entranhado na história da música ocidental e transformou seus recitais em acontecimentos.
O próximo ocorrerá a partir da semana que vem, em quatro noites, no Teatro Cultura Artística, no centro da capital paulista. O programa é bem representativo do repertório da artista, que executará o “Concerto para Piano e Orquestra nº 2”, do polonês Frédéric Chopin, e o “Concerto para Piano e Orquestra nº 1”, do russo Piotr Ilich Tchaikovski.
Desde o início de sua carreira, há duas décadas, Wang lida com as mesmas perguntas sobre a preferência por roupas curtas. A melhor resposta foi dada ao jornal britânico The Guardian, em 2017. “Se a música é bonita e sensual, por que não escolher um vestido adequado?”.
De fato, seu repertório, centrado na tradição eslava, de Rachmaninov e Tchaikovski, é inspirado no folclore russo e nas canções entoadas nos cabarés de Moscou. Wang afirma a experiência do corpo na execução musical e se opõe ao pensamento de que o belo, na música clássica, deve ser ascético e idealizado.
Durante muito tempo, a reação da crítica foi, sobretudo, machista. Em 2011, o crítico do jornal Los Angeles Times, Mark Swed, escreveu que as apresentações de Wang deveriam ser proibidas para menores de idade. Dois anos depois, o crítico da revista mensal The New Criterion, Jay Nordlinger, disse que o vestido da pianista mal cobria seu traseiro.
A querela sobre os vestidos, motivo de fascínio para parte da imprensa, só faz esconder o tema de real importância: a maneira como a interpretação dos solistas tem mudado. Ao longo da história, ouvir música com os olhos fechados denotava a qualidade artística do compositor e do intérprete. Nas capitais europeias, ainda é bem comum passar horas numa sala, rodeado por diletantes que, entre suspiros, parecem dormir, em plena fruição do programa.
De fato, a música instrumental pode ser compreendida como um símbolo inacabado. Em contraste com romances ou quadros figurativos, sinfonias não oferecem uma mensagem evidente. São páginas em branco, preenchidas segundo as emoções do ouvinte. Abstrata, a música passou a ser reproduzida em ambientes austeros, sem cenografias, deixando que a forma da composição expressasse o seu conteúdo. Acontece que as novas tecnologias de comunicação põem em xeque a abstração artística, exigindo um apelo visual e mesmo literal.
Enquanto as redes sociais impulsionam imagens a todo instante, a concentração nas salas de concerto diminui. Por isso, já não basta dominar a técnica e o estilo. Wang explora recursos atrelados à visualidade, na moda ou na expressão corporal, para reter a atenção do ouvinte. A sola vermelha do salto Louboutin martelando o pedal do piano já se tornou sua marca registrada, e a movimentação de seu corpo no palco dramatiza a música, de tal modo que parece ser ensaiada para as câmeras.
Em suma, a visualidade, alicerce de festivais de música e programas de TV, é a primeira instância da era da performance na música clássica. Não por acaso, é cada vez mais frequente o uso de projeções em concertos, sob a justificativa de aumentar a interação da plateia com a obra. Do mesmo modo, a visualidade é explorada pela indústria fonográfica, sobretudo quando associada ao mercado do luxo.
Disputada por estilistas, Wang é a garota propaganda de duas grifes, a suíça Akris e a francesa Hervé Léger. As duas casas oferecem os modelos usados pela pianista, que estrela as propagandas da Rolex e da Louis Vuitton. No Instagram, Wang tem 466 mil seguidores, número expressivo para uma artista erudita. Em paralelo, os selos de música clássica, como a alemã Deutsche Grammophon, gravadora de Wang, tornam seus produtos mais atraentes, transformando as capas dos discos em obras de arte.
Nessa invasão de imagens, há quem abra mão da experiência acústica ao vivo, ainda insubstituível, para consumir música clássica como uma série da Netflix. A Medici.tv é uma plataforma presente em 177 países, incluindo o Brasil, que, cinco anos atrás, teve 50% de sua operação comprada pela LVMH, grupo empresarial da Louis Vuitton —a outra metade pertence aos fundadores, os franceses Hervé Boissière e Paris Mouratoglou.
Do mesmo modo, ocorre uma mudança no perfil dos músicos. No passado, os supertalentos eram conhecidos pela discrição e resguardavam o mistério intrínseco à música, aquele símbolo inacabado. Agora, porém, agem como Wang, uma celebridade.
Em seu livro “Conversas sobre Concerto”, o musicólogo americano Joseph Kerman lembra que o exibicionismo é intrínseco à música concertante. A exibição, escreve Kerman, é prevista no virtuosismo dos solistas, que se destacam em relação à orquestra. Desse modo, grifes sempre se associaram a artistas renomados e maestros fizeram fama com suas caras e bocas.
O que acontece agora, porém, é de outra ordem, porque surge menos da partitura do que da necessidade de acompanhar as novas formas de consumo. No caso de Wang, é um purismo pensar que seu vestido curto impede a fruição musical, como alguns afirmam. Ninguém tem o direito de dizer como uma solista deve se vestir e tampouco devemos conceber a música clássica como uma forte de arte imutável.
Wang, porém, não escolhe a roupa somente de acordo com o repertório, na medida em que a moda também empresta visualidade à interpretação, uma exigência do mundo contemporâneo. É uma linha tênue, mas, se usados em excesso, recursos visuais durante os concertos incomodam, porque são incompatíveis com a abstração.
Projetar fotografias em um telão, à maneira de um show, é tão somente uma forma de rebaixar a música a um papel secundário. A pianista georgiana Khatia Buniatishvili, por exemplo, chama mais atenção por suas performances do que pela música que toca. Não causa surpresa que tenha o costume de sair tanto da partitura.
Nos anos 1950, o pianista Glenn Gould já alertava para a necessidade de reduzir as interpretações ao essencial, o som e o sentido. A música clássica do século 21 está diante de uma encruzilhada, buscando, a um só tempo, preservar à natureza de sua linguagem e responder aos novos tempos. Conciliando esses desafios, Wang tornou-se uma celebridade mundial, como será constatado no Cultura Artística.
O “Concerto para Piano nº 1”, de Tchaikovski, talvez seja o mais conhecido no mundo e soe até clichê para os melômanos. Concluída em 1875, a obra foi revista algumas vezes por Tchaikovski, dada a reação negativa de seu amigo, Nikolai Rubinstein, ao escutá-la pela primeira vez. A estreia ocorreu no mesmo ano, com a Orquestra de Boston, nos Estados Unidos, e Hans von Bulow como solista.
Existem motivos para o primeiro movimento ser tão lembrado. Kerman, o musicólogo, explica que Tchaikovski encontrou seus acordes no “Concerto para Piano e Orquestra nº 2”, do húngaro Franz Liszt, mas decidiu fazer uma mudança: duplicou essas tríades em ré bemol, de modo que os compassos soassem espaçados.
Por isso, ouviremos Wang executando os acordes como três blocos separados. O segundo movimento, mais lento, estabelece um contraste, mas ainda com melodias melífluas. Por fim, o terceiro movimento encerra a composição, com um rondó até a coda triunfante.
Já o “Concerto para Piano nº 2”, de Chopin, tem uma história de amor como pano de fundo. Estreado em 1830, em Varsóvia, foi concebido como uma carta de despedida à sua terra natal, para a qual nunca mais regressaria depois da primeira apresentação, e inspirado em Konstancja Gładkowska, soprano de 19 anos, com quem mantinha estreito contato.
O tema do primeiro movimento, “Maestoso”, fica na cabeça, enquanto o “Larghetto”, no segundo movimento, busca mimetizar as melodias cantadas pela jovem cantora, como num poema sinfônico, que antecede o “Allegro” no final. Wang será acompanhada pela Mahler Chamber Orchestra, fundada em 1997 pelo maestro italiano Claudio Abbado.
O conjunto iniciará o programa com a “Abertura Coriolano”, composta em 1807 pelo alemão Ludwig van Beethoven, que funciona como uma de suas sinfonias heroicas, em um formato reduzido. E também tocará o “Concerto em Mi Bemol para Orquestra de Câmara”, escrito entre 1937 e 1938, pelo russo Igor Stravinski. Na composição, destaca-se o trabalho do autor com os instrumentos de sopro, em primeiro plano, atribuindo uma base rítmica em “staccato”, dentro de uma estética neoclássica.
Não é a primeira vez que Wang vem ao país. Em São Paulo, ela se apresentou em 2018 e 2011. No ano passado, tocou no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, e a performance virou barraco: Wang interrompeu o recital e abandonou o palco, em protesto pelo barulho da plateia. No fim da noite, foi vista comendo galeto e tomando chope num bar em Copacabana.
Autora do clássico “O Jornalista e o Assassino: Uma questão de Ética”, a repórter Janet Malcolm, morta há quatro anos, escolheu Yuja Wang para ser a personagem de um dos últimos perfis que assinou na revista americana The New Yorker. A reportagem, publicada em 2016, expôs o tão comentado gosto da artista pela vida noturna.
A reportagem de Malcolm deixa ver certa melancolia na vida da pianista, sozinha em hotéis depois de receber a ovação de cada noite. Wang passa apenas alguns dias por ano em seu apartamento, em Nova York. Ela nasceu em Pequim e teve o primeiro contato com a música, acompanhando sua mãe, uma bailarina, nos ensaios. Foi quando ouviu Tchaikovski pela primeira vez. De seu pai, um percussionista, só ganhou incentivos para, aos 6 anos, começar a estudar piano. Com o rápido progresso, logo entrou para o Conservatório Central de Música, que fica na capital chinesa.
Em 1999, mudou-se para o Canadá e virou a aluna mais jovem do Mount Royal Conservatory. Em seguida, ingressou no Curtis Institute of Music, na Filadélfia, Estados Unidos, onde conheceria seu mentor, Gary Graffman. Questionada por Malcolm sobre a política em seu país, emudeceu. Limitou-se a dizer que os pais eram muito comunistas e valorizavam o pensamento coletivo.
A instrumentista despertou o interesse da crítica em 2007, ano em que substituiu às pressas a argentina Martha Argerich, uma das melhores pianistas de todos os tempos, em uma noite com a Orquestra Sinfônica de Boston. No programa, constava, claro, o “Concerto para Piano nº 1”, de Tchaikovski.
Sobretudo, Wang tornou-se um símbolo de uma revolução na música clássica: a China virou o maior mercado consumidor do gênero e exporta ao mundo talentos, dominando também a produção dos instrumentos usados pelas orquestras.
A Europa e os Estados Unidos descobriram o crescimento do gênero na China em 2008, quando Pequim sediou os Jogos Olímpicos —e Wang despontava no cenário internacional. De fato, o Partido Comunista chinês equiparou os investimentos em seus atletas com o incentivo para a formação de novos músicos. Considerou a música clássica uma “forma de arte avançada” e usou a cultura ocidental para acirrar a disputa política com o Ocidente e ampliar seu “soft power”.
Meses antes dos Jogos Olímpicos, uma reportagem do jornal britânico The Guardian alardeava a existência de 20 milhões de pianistas na China —hoje são 50 milhões, segundo dados da Academia Chinesa de Música. A paixão por esse instrumento é mesmo particular. Afinal, o Ministério da Educação passou a atribuir pontos extras no vestibular aos alunos de piano.
Ter o objeto em casa virou uma questão de status para as famílias em ascensão na sociedade. O crescimento exponencial de instrumentistas foi apelidado de “efeito Lang Lang”, pianista chinês de fama mundial, que ao lado de Yuja Wang e Yundi Li são cultuados pelos jovens, como acontece com os jogadores de futebol no Brasil.
Em paralelo, a China domina hoje a indústria de instrumentos. São 142 fábricas espalhadas no território, que produzem anualmente 370 mil pianos —número que inclui parte da produção da Steinway & Sons, a marca de piano mais famosa do mundo— e 1 milhão de violinos. Para dar vazão à estratégia, o Ministério da Educação repatriou alguns dos maiores talentos chineses para que ensinassem música nos conservatórios.
O governo mantém 80 orquestras e investe na construção de salas de concerto. Uma das mais vistosas é o Centro Nacional de Artes Cênicas, inaugurado em Pequim em 2007, com o custo de 3 bilhões de yuans. Projetado pelo francês Paul Andreu, o prédio é chamado de Ovo Gigante e tem uma sala de concertos, um teatro e uma ópera. Nesse cenário, a música tradicional chinesa, que tem uma linguagem alicerçada em instrumentos milenares e no uso da escala pentatônica, perdeu adeptos para o repertório ocidental.
Nem sempre o regime chinês apoiou a música clássica. Durante a Revolução Cultural, promovida por Mao Tsé Tung no fim da década de 1960, o gênero foi banido do país, porque reproduzia valores ocidentais. Os guardas de Mao perseguiram músicos, levando alguns deles à prisão ou ao suicídio.
Se a música clássica se transforma hoje, a estratégia chinesa indica continuidade. Afinal, poucas formas de arte foram tão usadas por governos. Na Guerra Fria, os Estados Unidos ocuparam a Alemanha e usaram as orquestras locais para “desnazificar” o país. Os americanos controlaram as rádios alemãs e impuseram a difusão de seus compositores, como Samuel Barber e Aaron Copland, impedindo que a população ouvisse música de raiz germânica, tão valorizada pelo nazismo.
À época, os americanos também intervieram na Filarmônica de Berlim, trocando o maestro alemão Wilhelm Furtwängler, cortejado por Hitler e Goebbels, pelo romeno Sergiu Celibidache. No tempo presente, a expansão da música clássica na China tem impulsionado teorias apocalípticas entre os ocidentais. Não é raro ouvir críticos, músicos e maestros prevendo, daqui a algumas décadas, a morte do gênero no Ocidente. Para tanto, eles se baseiam no perfil do público que frequenta as salas de concerto.
A média de idade do assinante da temporada da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a Osesp, é de 63 anos. Nas vendas avulsas, o número cai para 43 anos. É preciso olhar para o cenário de apocalipse com um certo cuidado. O cultivo da música clássica sempre foi afeito a um público amadurecido, que entende a música como pensamento, e não como entretenimento. E, se a Ásia investe milhões na indústria, tem-se uma prova de que o gênero está vivíssimo.
A China, no entanto, não conseguirá dominá-lo tão facilmente. A pandemia impactou a vida econômica das famílias, que acabaram gastando menos com instrumentos. O resultado foi uma sequência de anos em que a indústria registrou diminuição na venda.
Existem ainda outros problemas: faltam grupos de música de câmara no país, as orquestras não têm a mesma qualidade que as europeias e as americanas, regiões interioranas não recebem o mesmo nível de investimentos que os centros urbanos, a China tem uma tradição própria de ópera e, mais importante, Beethoven ainda é alemão.
Ninguém chega à elite da música apenas por tensionar parâmetros comportamentais e interpretativos. Wang é precisa no ataque das notas e tem um raro poder de articulação —técnica musical que faz referência à capacidade de executar uma sequência de notas, conjugando diversas variáveis, como o timbre e a dinâmica.
Nesse contexto, a pianista mostra o seu virtuosismo sobre-humano ao enfrentar um repertório de dificuldade extrema. Por isso, recebe um tratamento laudatório da crítica, o que não significa a inexistência de lacunas em sua trajetória na música clássica.
De início, seu repertório guarda um paradoxo. Se não fosse a popularidade dos compositores da tradição russa, Wang talvez não tivesse alcançado a fama que tem na atualidade. Ela, porém, não é a melhor intérprete de Rachmaninov e Tchaikovski. Revela-se brilhante ao executar peças menos conhecidas, do início do século 20 até as vanguardas europeias, em especial o trabalho que desenvolve com a obra do húngaro György Ligeti.
Na peça “A Escadaria do Diabo”, que integra o segundo livro de estudos do autor, Wang revela seus superpoderes. O nome mefistofélico dá uma ideia da dificuldade da composição, alicerçada numa sequência de escalas que mimetizam a função matemática, cujo gráfico parece uma escada. A peça requer do intérprete ausência emocional, e Wang tem a frieza compatível com as indicações da partitura.
Sua discografia mostra a expansão do repertório. Os quatro primeiros discos são marcados pelo romantismo eslavo —”Sonatas & Études” (2008), “Transformation” (2009), “Rachmaninov” (2010) e “Fantasia” (2012).
Pouco a pouco, a artista se virou para outros compositores, como percebemos nos discos “The Verbier Festival – Debut Recital” (2023), com Ligeti e Scriabin, e “Messiaen: Turangalîla-Symphonie” (2024). Há pelo menos duas décadas, Wang é cobrada para tocar compositores germânicos, como Beethoven e Schumann, mas afirma não ter a maturidade necessária para tanto.
Sua frieza está relacionada à equiparação de pianistas a atletas, que compartilham a noção de performance. No YouTube, dezenas de canais conquistam suas curtidas mostrando passagens em que ela toca em alta velocidade, como se o sublime estivesse condicionado ao elogio da rapidez, tão em voga entre os novos públicos. Ocorre que a velocidade, sempre associada ao virtuosismo, pode ser apenas uma distração.
Embora não seja uma particularidade da revolução asiática, o regime chinês impôs um modelo aceleracionista à música clássica, mostrando traços comuns ao capitalismo. O sociólogo alemão Hartmut Rosa revelou o que está por trás da nossa falta de tempo crônica no livro “Alienação e Aceleração: Por uma Teoria Crítica da Temporalidade Tardo-Moderna”, que chegou ao Brasil traduzido por Fabio Roberto Lucas.
Com a ubiquidade da informação, a dinâmica dos meios produtivos precisa acelerar para produzir e acumular a contento. Só assim a China alcança os crescimentos exponenciais a cada ano. Em paralelo, as transformações sociais, diz Rosa, acompanham o mesmo ritmo, com uma linguagem ainda mais célere, transmitida em vídeos do TikTok.
O regime de aceleração da linguagem, porém, tem consequências estéticas, sentidas em diferentes formas de artes, dado que o tempo cotidiano se contrai. No que concerne à música clássica, as plateias, acostumadas à velocidade das redes sociais, não conseguem acompanhar a duração de uma sinfonia ou mesmo de uma sonata. Na sala de concertos, o desempenho do solista precisa reter toda a concentração que o público não tem. Do contrário, as cadeiras do teatro podem ranger, tal como ocorreu com Wang, no Municipal do Rio, no ano passado.
Os músicos são os primeiros a sentir os efeitos do tempo contraído e protagonizam arroubos, não virtuosísticos, mas performáticos. Por vezes, quanto mais rápido se executa a partitura, menos significado é extraído dela.
E, quanto mais rápido se toca a música, maior o risco de haver público e artista alienados, porque incapazes de sentir as nuances da composição. Wang fala em maturidade, mas para se interpretar uma peça de Schumman, é preciso mais esmero artístico e menos desempenho atlético. Mais densidade e menos superficialidade.
O desafio atual é respeitar a temporalidade de cada peça e a imensidão do instante musical. O culto a Wang, e a outros pianistas do século 21, não pode ser dissociado da cultura da aceleração. Visualidade e aceleracionismo compõem, assim, duas faces que se relacionam na era da interpretação performática, definida pela absorção de elementos da cultura de massa para a produção e o consumo do repertório canônico.
Desse modo, a música clássica metamorfoseia-se à maneira de um poema sinfônico. Território pulsante, zona de influência dos poderosos, o gênero tende a ser cada vez mais cultuado na Ásia. Pouco a pouco, o estilo de interpretação altera-se, com o emprego de recursos visuais e uma técnica aceleracionista, o verdadeiro risco para a sobrevivência do gênero. Por tudo isso, Yuja Wang é a pianista que melhor reflete o nosso tempo.
Fonte ==> Folha SP